terça-feira, 30 de outubro de 2007

Nos Lábios de Vinho com João Camossa

«TRÊS TIPOS DE PORTUGUESES

Os Fuzeteiros são marinheiros, velejadores e caracterizam-se pelos excelentes barcos à vela que possuem, rapidíssimos, os mais rápidos do mundo; guardam os segredos das velas. Encontram-se em toda a costa algarvia e costa alentejana, até Sesimbra. Na Ericeira e em Paço de Arcos há uma variante deles que são os Jagotes.

Os Aveiros são os que fazem a ligação dos homens do mar com os almocreves, são os armadores da pesca ao atum e da pesca ao bacalhau. São oriundos de Ílhavo (Aveiro) e distribuem-se por toda a costa a norte de Lisboa (Peniche, Nazaré, Figueira, Aveiro, etc.), o último núcleo deles é em Portugalete, perto de Bilbao, no Golfo da Biscaia. As suas embarcações não têm vela, são aguçadas nas pontas, deslocam-se a remos e são puxadas por animais em terra.
No Algarve há dois núcleos deles, um em Olhão e outro em Lagos; geralmente consideram-se gente fina e não se misturam com os Fuzeteiros (pescadores, gente do mar), pois eles não são pescadores nem marinheiros, são armadores e capitães.

Os Poveiros não têm embarcações mas são embarcados que auxiliam na pesca e há-os muitos para o norte...»

Palavras retiradas no decorrer de uma conversa de
Francisco Moraes Sarmento e Nuno cavaco com
João Camossa
(café do Bairro Alto na noite de 22 de Julho de 1991)

Política - I

Certezas versus Convicções


As guerras e guerrilhas pululam e acontecem aqui e ali na roda do mundo; são as manifestações de uma guerra mundial. São as expressões de uma guerra mais profunda e obscura, de uma guerra cujo cerne não se expõe. São as expressões de um conflito secreto de ideologias, com foco unilateral.

Um dos lados não aceita integrar-se com o outro. Aquele afirma-se com soberba desmedida em tolerância para com este e, em caso de dúvida, ofende despudoradamente...

A política parece a acção do pensamento dos homens, o exercício sobre o território daquilo que os homens pensam; é a organização da polis. A acção do pensamento sobre o território, ordenar a terra em ordem ao espírito, por forma a satisfazer as necessidades humanas, resulta na polis – terra organizada, com pensamento… O político é aquele que detém o conhecimento necessário a garantir a ordem da polis.

A guerra do mundo parece a guerra obscura e unilateral do socialismo contra o liberalismo.

No frenesim diverso e complexo das interrelações humanas, parece existir um grupo de homens que acumula certezas a partir das quais fazem irradiar o seu governo sobre os restantes.

Outros homens, de índole diversa daquela, vivem e actuam firmes em convicções a partir das quais pretendem e confiam a irradiação da ordem que deve reger a afirmação e interacção de cada pessoa com e entre os demais e toda a sua circunstância.

As certezas, em geral derivadas de traumas, alucinações e temores, tendem a accionar o pensamento com expressão proteccionista, determinista e socialista.

As convicções, geradas por confiança religiosa, por intuição artística, por experimentação científica, e sobretudo por exercício filosófico, motivam o pensamento de expressão decidida, mas receptiva e liberal.

A guerra (que parece fatal) em que o mundo eternamente se enrola e desenrola, é a ofensiva obscura, permanente, desmedida e brutal das certezas contra as convicções.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Arquitectos - I

Sobre a prática dos arquitectos


Pode um arquitecto desenvolver um projecto para determinado sítio, eternamente fixado ao estirador e computador de sua oficina?

Pois não há-de esse mesmo sítio indicar e informar a realidade dos problemas que se levantam e assinalar o caminho para as soluções adequadas ao projecto em causa?

O minimalismo abstraccionista que tende a reduzir as figuras à expressão geométrica, não as transforma em esquemas mortos?

Ou não é a geometria o esqueleto das artes?

Se aceitarmos a arquitectura como expressão artística, então o que confere forma animada a uma obra arquitectónica para que não se quede como esquema morto?

Na sucessão dos tempos, não serão alguns vividos profunda e firmemente e outros passados em existência ruminante e epidérmica?

Que tempo é este que nos é dado viver?

Qual a origem da Arquitectura?

Que sentido e razão a justificam?

De que modo interfere a expressão da actividade arquitectónica no convívio entre os homens?

E em que medida contribui ou dificulta a liberdade das pessoas?

Não é do seio das famílias que grande parte das crises, ditas sociais, emanam?

Que consequências trará a uma família a ausência de ordem, segurança e conforto no seu lar?

Interroguemo-nos do mesmo modo sobre o ambiente laboral e, o que nos ocorre dizer sobre os critérios e qualificação da construção que se desenvolve neste tempo que nos cabe?

Não é nos momentos de encontro de cada homem com a sua circunstância, em sua justa medida, que se dá a promoção da harmonia e do conforto que procura durante a vida?

A composição de uma obra arquitectónica, por analogia ao organismo humano, por exemplo, não deverá dar-se de tal modo que seus órgãos se agrupem e interrelacionem conforme as suas funções e respectivas interdependências?

A proporção da forma arquitectónica não resulta das justas medidas necessárias ao abrigo da função a que se destinam?

E em certa forma arquitectónica, a hierarquia das funções não determina a posição relativa de cada uma delas face às demais, reflectindo-se fatal e consequentemente os seus graus de importância na composição em causa?

É errado dizer que sempre, de algum modo, uma obra arquitectónica afecta o pensamento de quem com ela interage?

Afinal que valores movem o arquitecto actual, que é quem grava sobre o território a escrita que em sentido transversal à sucessão de gerações humanas condiciona todas essas vidas?

Afinal que civilização serve o arquitecto que nos condiciona a vida?

Na verdade, não depende dele muita da nossa emoção, da nossa racionalidade e da nossa vida?
Então, que responsabilidades deveremos firmemente exigir-lhe?

domingo, 28 de outubro de 2007

O Guardador das Rotas e das Rótulas – VIII

A Tourada


Temos que o touro bravo existe para proteger determinados territórios que constituem fontes de vida para certas comunidades. Territórios organizados por definida composição humana, cujas as funções dos elementos se supõem em hierarquias claramente organizadas, compostas em harmoniosa articulação. Entre essa gente, o touro bravo atinge foros de expressão sagrada, pois que garante a defesa contra a intrusão de malfeitores nos seus territórios, domínios ancestrais das suas vidas.

A sublimação, o ponto alto da exaltação do animal surge nos extremos pendulares das estações do ano com a transumância do gado em busca de zonas climáticas mais adaptáveis ao seu bem estar e onde na época poderão dispor de pastagens adequadas às suas necessidades. Esses extremos, de partida e chegada do gado, nos quais o bovino assume lugar especial, proporcionam a festa em que a exaltação máxima ocorre dentro da arena com a lide dos touros bravos. O cavaleiro, qual S. Jorge sobre cavalo branco saído da luz para o círculo que define a arena – imagem geométrica do caos – que com inteligência de aristocrata deve dominar e levar a besta, a fera, a força bruta desprovida de pensamento e saída da sombra, para o centro onde deixará cair a lança sobre o dorso do animal, metamorfoseando a arena conferindo-lhe finalmente a forma de circunferência, deixando então simbolicamente fixada a ideia do Cosmos, qual mundo devidamente ordenado.

A lide de touros é o tributo regular dos homens ao animal que guarda as fronteiras de um território necessário à existência de uma comunidade humana. O touro, forte, sóbrio e assustador coroa uma espécie que tem oferecido aos homens desde o início os fertilizantes para as culturas dos seus territórios, a força bruta para puxar os arados e arrastar as cargas que excedem as possibilidades humanas, o leite e a carne que possibilitam a reposição obrigatória e regular das proteínas no organismo humano, as peles para os coiros e cabedais destinados à indumentária e outros artefactos úteis à sobrevivência humana, a irradiação de calor aos lares, fonte ancestral de aquecimento das antigas habitações rurais, aliás, fonte arquetípica de calor, logo presente na natividade de Jesus.

A tourada afigura-se racional, necessária e decisiva para a preservação da paisagem portuguesa. O touro português é o guardador das fronteiras entre a civilização do mar e as potências colonizadoras continentais. É o touro o primeiro reduto da defesa da nossa civilização. É entre os cabanos e os gravitos que passa a linha que distingue profundamente a civilização aberta, excêntrica, destemida, liberal, dos portos, ou Portugal e a civilização enclausurada, egocêntrica, receosa, proteccionista dos castelos, ou Castela. A erradicação da tourada, significa o extermínio dos touros, e o extermínio dos touros significa a explosão caótica da Península Hispânica. A paisagem da tradição portuguesa, que exprime a sabedoria de encontro ecuménico, de relações liberais, e de tendência universal no convívio entre homens das mais diversas proveniências metafísicas, intelectuais, genéticas e biológicas, tenderá a desmoronar-se definitivamente.

A tourada é a festa rústica de primeira ordem da Pátria Portuguesa, na qual se exalta o animal que é decisivo para a sobrevivência da nação em que o espírito que dá sentido a Portugal primeiramente encarnou. As ganadarias nacionais são a guarda avançada da civilização talássica e o touro afigura-se como o guarda-mor da paisagem portuguesa lusitânica (se é que Portugal ainda mora aqui…).

O Guardador das Rotas e das Rótulas – VII

O Desenho e o Desígnio

Face aos desafios internacionais a conformação do orbe e da urbe reflecte a atitude de defesa e projecção perante potenciais reordenadores e desordenadores; essa atitude tem suas expressões nos elementos físicos que definem os espaços e ritmam os tempos. Como temos vindo a referir, afigura-se premente a definição de indicadores essenciais ao entendimento da paisagem que conduzam ao seu certo e justo ordenamento; o estudo da logística assume particular e decisivo relevo na definição dos fluxos e dos estabelecimentos que caracterizam a vida que do homem pende. Casos de estudo a enunciar, pela posição geográfica e pelo património que guardam, revelam-se notáveis e singulares casos de caracterização.

A procura de caracteres da mobilidade humana por identificação de rotas e rótulas notáveis, que por metodologia de caracterização fisiográfica do suporte territorial entroncada nas expressões da humanização da paisagem respectiva, tende a revelar hierarquias intemporais das deslocações, interacções e assentamentos humanos no orbe e nas urbes.

Para o ordenamento da paisagem, implica e afigura-se decisivo o estudo rigoroso e objectivo em certos domínios, com elaboração e fixação de elementos caracterizadores do ambiente em causa e indiciadores de procedimentos projectuais possíveis. Esses elementos, entre outros, poderão consistir na produção de cartografia reveladora nos seguintes domínios: fisiografia com a identificação e hierarquização de festos e talvegues; identificação dos ventos dominantes, suas características e rumos específicos; as incidências da luz e ensombramentos potenciais, com exposições genéricas e específicas do relevo; condicionantes geológicas, com noções das estruturas e dinâmicas tectónicas; definição, caracterizações genérica e especifica, e delimitação defensiva dos solos férteis; identificação e protecção dos mananciais hidrológicos; identificação e caracterização de campos electromagnéticos e outras emanações energéticas; indicadores toponímicos; a potencialidade dos locais decorrente do estudo de aptidão segundo a exposição. Importa também destacar estudos de sobreposição de vias, como sejam as de transumância de gados, as do ordenamento romano, as da composição cristã do mundo, as decorrentes do motor de combustão, as da era cibernética. Também cabe lembrar a importância do registo da sobreposição de edificações, como sejam: os castros, os castelos, as fortalezas, as bases militares, as telecomunicações, as estruturas portuárias, a assistência humanitária através de capelas, ermidas, gafarias, estalagens, hospitais, etc.

As rótulas consistem em centros de encontro ou centros de distribuição, sendo que destes, numa abordagem fisiográfica, de um modo genérico e com carácter intuitivo, os primeiros podemos identificá-los nas separações dos festos e os segundos nas convergências de águas. A rótula gera a região que será ordenada a partir de uma urbe, uma quinta, uma ermida, uma capela, um convento, um mosteiro, um castelo… que, em função de uma série de factores, assume posição hierarquicamente estratégica na região que lhe cabe. É nas relações polares e pendulares que os homens incessante e incansavelmente desde a origem cumprem entre rótulas, que sobre o suporte ficam gravadas as rotas, qual forma análoga àquelas das águas sobre os solos que sulcam.

Descobrimos e caracterizamos a razão da forma da paisagem nas interacções humanamente impressas e inteligidas sobre a circunstância histórica natural e artificial do mundo. O desígnio da humanidade patenteia-se nos sinais implícitos e explícitos que se revelam nas formas do frenesim da imensa existência. É na capacidade de leitura e exposição desses sinais que reside o segredo da arte de bem ordenar a paisagem; estamos a falar do que o Desenho é, ou seja, o Desígnio.

O Guardador das Rotas e das Rótulas – VI

Urbanismo e Paisagem

É bela a paisagem que está certa


A noção em epígrafe é recorrentemente lembrada e recomendada por A. P. Dentinho como lema à arte de bem entender, compreender e ordenar a paisagem.

Estranho tempo, este que nos é dado viver! Nunca, como na actualidade, os homens dispuseram de tantos meios que permitissem a expressão dos seus pensamentos, e a sua intervenção sobre a existência, com uma segurança que invejaria qualquer homem de outros tempos. No entanto parece desolador o panorama que se depara na ocorrência próxima do mundo. Como se o mundo deixasse de ser mundo – isto é, caos organizado, e passasse a constituir-se numa acumulação de fragmentos justapostos sem critério reconhecível ao entendimento, como que imitando uma qualquer obra de Picasso. É que toda a existência aparece fragmentada, e cada fragmento, ou cada parte, perdida que está daquela que lhe cabia ser vizinha, parece não mais ter capacidade de conhecer e saber sobre a nova vizinhança. A composição que resta é feita de cacos justapostos entre si em procura desesperada de uma forma perdida. A existência que corre apresenta-se em forma nostálgica ou incompreensível de partes partidas e repartidas, recolocadas e coladas de acordo com interesses invisíveis, difusos e desconhecidos que mais parecem confinados a domínios particulares sem que se vislumbre ocorrência universalizante. Efectivamente a vida actual decorre às partes; e embora cada parte se aparente una em si, sucede que perdidos os respectivos e necessários complementos, o sentido universal fica ausente.

Como nada há sem pensamento, foi a partir de Descartes que irradiou e impregnou no mundo a sistematização filosófica que ainda hoje nos condiciona as relações de vizinhança e incessantemente consubstancia a desagregação fragmentária das realidades. Essa irradiação prolongada por todo o século XVII, XVIII e XIX terá levado a que, ou já por estratégia operativa de efectivação desse pensamento, ou já por previsão do frenesim escorregadio, estridente e caótico em que a vida se tornaria, emergisse uma nova disciplina. Destinou-se ela a determinar ou controlar o domínio das regras, das técnicas e dos hábitos de que os homens dispõem para conceber e construir, sobre o território, a vida comunitária. Chamariam a essa disciplina o urbanismo, designação conotada com a imagem urbana da comunidade. Assim se procurou dominar o sentido da urbe, defendendo-o da estratégia e da previsão criadas pela geometria descritiva, com a homogeneização e pontualização que Descartes concebeu para o espaço. Será evidentemente discutível se o urbanismo surge para efectivar ou para contrariar a geometria cartesiana. O que não é discutível é o sentido da urbe enquanto lugar onde tudo se une e tudo se cinde – convergência de pastores, agricultores e pescadores; estância de indústrias e de mercadores; sublimação e irradiação de sabedoria.

“As três mais belas cidades do mundo são Constantinopla, Rio de Janeiro e Lisboa. Eu prefiro Lisboa porque é aquela onde a natureza está mais moralizada”. Acabo de transcrever um trecho da correspondência do Conde de Gobineau, o famoso autor do «Tratado Sobre a Desigualdade das Raças Humanas». Esta transcrição dá-nos a imagem com que uma grande sensibilidade de artista viu como a paisagem emerge do país, mas humanizando-o ou moralizando-o. Constitui o mais adequado testemunho de que a beleza de uma paisagem provém de ela estar certa, como sugere o lema proposto pelo Arquitecto-paisagista Álvaro Ponce Dentinho, entendendo por certa a adequação do país ao homem, à moral ou ao pensamento.

O Guardador das Rotas e das Rótulas – V

A Ponte de Comando


Acreditamos que enquanto pátria Portugal é perpétuo, embora a sua existência como nação, conforme a conhecemos desde há pelo menos quase 800 anos, se nos apresente a definhar, quase extinta. Esta antiga ponte de comando da grande parte das situações geoestratégicas de maior excelência que guardam as rotas e as rótulas marítimas, a que insistimos em chamar Portugal, mais se afigura um Portugal regressivo, uma quase Lusitânia (ou Conistorgis, para os algarvios), um Portugal de expressão depressiva, caquéctica e moribunda.

Aprendemos com os filósofos que nada há sem pensamento. Seguindo a sua aula, diríamos que a compreensão dos factos históricos só adquire sentido entendendo o pensamento que os motivou, ou seja: a filosofia da história.

A expressão do pensamento tem lugar no tempo e no espaço, sendo condicionada pela circunstância física que então dispõe, adquirindo então a forma que lhe é mais adequada. É através do entendimento e conhecimento razoável das notas caracterizadoras da forma disponível, que o pensamento que lhe é próprio se dá a saber. Deste modo, o entendimento da forma disponível requer a necessidade de estudo rigoroso e objectivo dessa circunstância que condiciona e abriga o pensamento que lhe é próprio, quer-se dizer: a ecologia.

À obra que é expressão do pensamento humano chamamos Arte. É no que estabelece a relação entre a obra artística e o pensamento que lhe é próprio que reside a regra, ou o cânone, dessa mesma obra. Assim, identificando-se a forma disponível com a obra artística, o estudo das suas notas caracterizadoras, ou seja, a sua Ecologia, desperta-nos a simpatia pelas razões criacionistas e o conhecimento da sua existência, e revela-nos o cânone que lhe é próprio.

Seguindo o acima exposto, para que se retirem novos de velhos tesouros, e se dê sentido actual ao património de um povo, importa estudar e actuar firmados no trinómio constituído pela filosofia da história, a ecologia e os cânones artísticos que consubstanciam a existência desse mesmo povo.

A actualização e o sentido da existência da ponte de comando do Portugal dos portos, requer o exercício urgente sobre a filosofia da história que lhe dá o sentido, o descobrimento da ecologia que potencia o seu lugar no concerto das nações e a aplicação dos cânones que são próprios e adequados ao desígnio que importa seguir – guardar as rotas e as rótulas pelas quais passam as novidades que garantem a comunhão entre todos os entes e todas as coisas do mundo.

O Guardador das Rotas e das Rótulas – IV

Ordenar a Paisagem

Importa detectar, atender e decifrar os sinais que indicam o caminho adequado à animação e actualização do património português – “retirai novos de velhos tesouros” ordena o Livro Sagrado.

Afigura-se ventral e redutora toda e qualquer atitude, em qualquer que seja o nível de intervenção, que pretenda contribuir para o ordenamento da paisagem e que trate o seu objecto como uma ilha, ou como uma parte, ou como um fragmento. Não é possível determinar regras para o ordenamento arquitectónico, urbano ou rural isolando o objecto da sua circunstância física e metafísica. A urbe como suporte da cidade, por exemplo, é o corolário de uma sucessão dinâmica da vida comunitária já conhecida pelos romanos – Silva, Saltus, Ager, Hortus e Urbes, é a ordem pela qual a sabedoria clássica nomeou essa sucessão, não sendo a seguinte sem a anterior sendo sempre todas. Essa ordem não se desenvolve senão em movimento perpétuo e pendular entre centros de distribuição e pontos de encontro, termos hierarquizantes de toda a dinâmica territorial.

Assim, quando se trata de ordenar a paisagem com enfoque especial na urbe, toda e qualquer atitude de contornos ventrais que omita o entendimento da mesma como lugar onde tudo se une e tudo se cinde – convergência de pastores, agricultores e pescadores; estância de indústrias e de mercadores; sublimação e irradiação de sabedoria – prejudicará e debilitará o sentido de justiça, harmonia e paz que na verdade sempre deve irradiar de toda a obra que vise estabelecer as notas caracterizadoras e as regras que auxiliem a eficaz gestão urbanística de uma cidade. Neste sentido, a cidade portuguesa é pois um órgão que pertence a um organismo vivo que através de Portugal atinge os limites do mundo em movimento perpétuo de extensão e contracção, gregário e diaspórico.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

O Guardador das Rotas e das Rótulas – III

Impressões de viagem à Madeira

Surge antes de mais uma primeira incerteza que é a de saber quando e onde se inicia a viagem. De facto, a viagem terá seu início onde e quando o veículo que nos leva inicia seu movimento, ou no instante em que atingimos o cais do destino que nos propusemos visitar, logo após nele sermos largados? Ou antes, no momento e no lugar em que se dá a ideia da viagem que pretendemos? Ou ainda, numa outra qualquer circunstância que agora não ocorra?

Quando advém a ideia de visitar a Madeira, imediatamente se perspectiva a oportunidade de conhecer um território que se nos afigura decisivo na consolidação do Portugal autêntico, razão eventual do nome que tem – a quantidade de portos, na voz do sábio, assim como pinhal ou olival designam as quantidades das árvores supostas, o guardador e gestor das passagens, dos portos e das portas pelos quais e pelas quais passam as novidades que garantem a comunhão entre todos os entes e todas as coisas do mundo, como já antes tínhamos escrito.

Efectivamente, a Madeira parece afigurar-se como rótula que desde o início tem servido como banco para ensaios relativos a inovações tecnológicas e cientificas que supõem intenções de extensão e aperfeiçoamento no que respeita ao contacto e à comunicação entre os povos. De resto, não esconderá o nome daquele arquipélago, desde a primeira hora, a função estratégica, laboratorial e logística necessária ao desenho então traçado pelo Infante de Sagres, com assomos de projecto de comunicação global em sintonia e em consciência clara com o serviço que a Portugal cabe?

Madeira não é o mesmo que matéria e a matéria não é o que se manipula nos laboratórios? E para os antigos, dos quais brota a tradição, não eram os nomes das pessoas, dos sítios e das coisas a palavra síntese reveladora dos seus atributos herdados e projectados?

Por ora, diríamos que a viagem teve início no breve estudo sobre o arquipélago, a que nos entregámos em Lisboa antes da partida, por consultas bibliográficas, cartográficas, fotográficas, etc. A estadia programada confinar-se-ia ao território principal do arquipélago, a ilha da Madeira.

Ilha? De onde provém este modo de designar uma porção de território cercado por mar? Quem vive aí dentro sente e entende como tal esse território, como uma ilha? Do que nos tem sido dado observar, é que não existem territórios tão propícios às comunicações como sejam essas emergências que se encontram nos meios dos oceanos, quais rótulas por onde giram as rotas entre continentes, plataformas ancoradoiras propícias aos encontros e desencontros das vidas que circulam pelos mares abertos.

Na documentação disponível, logo se nos revelou a impressionante conjuntura fisiográfica do território e nos despertou o interesse por compreender os modos de ocupação e superação humana relativamente às adversidades e dificuldades inerentes àquelas formas naturais.

Procurámos compreender o relevo e as exposições aos agentes climáticos; tentámos perceber as estruturas geológicas e os mantos pedológicos; indagámos a distribuição das vidas vegetal, animal e humana na ilha, e tentámos conhecer as formas genéricas do povoamento e a sua natureza dominada. Pois que face à imagem prévia que retivemos no breve estudo inicial, impressão nos ficou que só dominando a natureza poderia ocorrer possibilidade única de humanização da paisagem, tal qual a testemunhámos naquela rótula do Atlântico.







Fig.1 – A brutalidade da natureza, dominada pela paisagem portuguesa, e posta em causa pelo avanço do turismo.



Exactamente, foi logo à chegada, no percurso entre o aeroporto e o Funchal que confirmámos as vertiginosas vertentes que em declives bastante acentuados, desde os picos mais elevados, a cerca de 1900 metros de altitude, mergulham no oceano, penetrando com o declive genérico da superfície até atingirem profundidades na ordem dos 3000 metros. A altitude máxima do relevo madeirense deve assim rondar os 5000 metros! … Abruptos precipícios com mais de 500 metros caem sobre o mar e sobre vales rasgados por ventos e por ribeiras que escorrem alimentadas desde os cumes mais altos por arroios e cascatas. Caminhamos na Madeira embailados numa sinfonia composta do chilrear diverso dos passarinhos, do tiritar suave das folhagens que acusam a passagem dos ventos, dos roncos de máquinas agrícolas ou de veículos na estrada, do matraquear longínquo, e por vezes próximo, irradiado de martelos pneumáticos e outra maquinaria usados nas imensas (talvez demasiadas!) obras de construção civil; toda esta ressonância tem como fundo, sempre, o escorrer e o bater de águas que nos toca os ouvidos desde múltiplos focos impulsionados por aquelas torrentes imensas que deslizam lá dos cumes altíssimos, luminosos que tocam o céu, como ilhas emergindo por entre um mar de nuvens…

Impressiona a contenção a que o homem tem obrigado a natureza neste jardim do Atlântico; exprime-se com grande fulgor a necessidade permanente da humanização da paisagem. Só pode ter sido assim desde o início! … Um confronto ininterrupto do Homem contra a natureza. Toda aquela paisagem, tal qual a encontramos, resulta de uma labuta intensa e necessária, desenvolvida pelos homens diária e ininterruptamente desde pelo menos há cinco séculos e meio, procurando manter viva toda uma actividade humana que sobre uma força bruta da natureza vem garantindo a função rótula que cabe àquela ilha, inserida no serviço reservado a Portugal no concerto das nações.

É notável a obra agrária indissociável da hidráulica, expressas nos poios e nas levadas. É que, sem dúvida, radica nestas obras o segredo do domínio da natureza bruta que ali emerge; a contenção daquelas montanhas em degraus por vezes como que nos lembram a velhice dos mistérios da humanidade ao surgirem na paisagem como que partes de pirâmides em ruínas.







Fig.2 – Uma levada e um caminho, os homens e as águas seguem os mesmos cursos.


Antes de embarcarmos na viagem, ainda em Lisboa, ouviríamos o governador da região, em grande espectáculo, numa festa local do seu partido, dizendo que o continente fez a Pátria portuguesa na Madeira, mas que agora é a vez dos madeirenses virem em auxilio do continente para tratar os males que por cá impedem o fluir do espírito patriótico nas decisões capitais. Confiando assim no sentido patriótico de A. J. Jardim, apetece sugerir que reúna na Madeira os meios necessários e promova as condições necessárias, para a formação de autênticos Ordenadores da Paisagem de tradição portuguesa. Faça-se, pois, aí, a escola de onde sairão os novos responsáveis pelas paisagens de tradição portuguesa, ou seja, os novos responsáveis pelos países que hão-de constituir o Portugal do futuro. É que, de facto, nos ficou a impressão que ali, naquela rótula do Atlântico, ainda flúi o sopro da Pátria; ainda resiste a sabedoria portuguesa para o ordenamento da paisagem; no entanto, já ameaçada pelas obras que têm ocorrido à passagem dessa roda lenta, dentada, de invenção afrancesada que, por onde passa, deixa rasto de destruição. O turismo…






















Fig.3 – A brutalidade da montanha, contida pela subtileza dos poios.

O Guardador das Rotas e das Rótulas – II

O nome de Portugal



Ao procurarmos compreender as relações dos povos entre si, em todos os tempos ou em qualquer tempo, parece difícil faze-lo sem que se atenda a eventuais motores de ordem espiritual, metafísica e religiosa. Consoante o povo ou os povos a estudar, afigura-se necessário indagar entre todo o género de expressão humana revelador de condicionantes dos costumes desses mesmos povos, sendo que essas fontes podem ser de características epigráficas, iconográficas, bibliográficas, documentais, monumentais, ou quaisquer outras, mesmo as de aparência subtil e pouco perceptível à leitura imediata dos sentidos. O percurso, a revelação e a dinâmica que o Cristianismo (que é como quem diz: a Igreja Católica) a todo o instante disponibiliza ao mundo, surge-nos também para Portugal, em todo o seu tempo e em toda a sua extensão, como a novidade em perpétua propagação, confinando, envolvendo e sublimando amorosa e universalmente todas as potenciais diversidades.

Assim, não vislumbramos a possibilidade de um novo desenho global nas relações entre todos os povos, sem a continuação do contributo efectivo de Portugal. Entenda-se Portugal como uma entidade que se exprime através das gentes das orlas, e que com sabedoria se fixam em pontos estratégicos gerindo e guardando os portos e as portas pelos quais e pelas quais passam as novidades que garantem a comunhão entre todos os entes e todas as coisas do mundo. Em toda a existência, o nome de Portugal parece pois só ter sentido firmado na consciência constante que as gentes e os povos das orlas hão-de guardar, enquanto responsáveis pela gestão das passagens que de si dependem.

O corpo de Portugal parece assim espalhado pelo Orbe. Mas, tal como as passagens numa casa, de fora para dentro, ou de dentro para fora, ou de um compartimento para o outro, em que nos podemos deparar com avarias diversas nos mecanismos que constituem as correspondentes portas, por excesso de uso sem manutenção adequada, ou apenas por negligência, abrindo caminho inseguro às relações entre os vários mundos que por elas comunicam, dizia, tal como as passagens numa casa, a quantidade de portos e de portas, que de acordo com o Arquitecto-paisagista Álvaro Ponce Dentinho parecem justificar o nome de Portugal, parecem também carecer da atenção especial dos responsáveis pela respectiva manutenção… Ou, já que o espírito sopra onde e como quer, terá Portugal mudado de nome?

O Guardador das Rotas e das Rótulas – I

Como e para que serve Portugal?


Na eminência constante da desordem do mundo, importa entender os sinais. Atender aos sinais e às suas expressões não levará também a entender toda a expressão dos corpos, a saber ler os caracteres que os constituem, isolados ou agrupados? Assim parece vislumbrar-se o caminho para o conhecimento do que condiciona e favorece a relação entre dois meios. Procuremos pois descobrir os mecanismos de equilíbrio no contacto entre duas inércias; no trânsito da vida, firme-se o ritmo das estruturas ligando os pólos e garantindo as permeabilidades; com o sentido da verdade, demandemos então o verso e o reverso daquilo que nos indica o caminho.

Atender às grandes questões que potenciam o ordenamento do território, face aos desafios internacionais emergentes, torna pertinente e urgente a dedicação, o estudo e a actuação em torno da importância da logística na definição dos fluxos e dos estabelecimentos que caracterizam a vida que do homem pende. Neste sentido, a conformação do orbe e da urbe reflecte a atitude de defesa, e ataque, perante potenciais reordenadores e desordenadores. Essa atitude tem suas expressões nos elementos físicos definidores de espaços e condicionados pelos tempos.

Não foi no povo português que, por circunstâncias diversas, convergiram os conhecimentos das estrelas dos céus, e das marés, e das correntes dos mares, e das formas da terra e dos ventos dominantes, e a quem, então, coube a responsabilidade de promover um novo desenho de rotas que abriria uma nova escala de relações entre todos os povos da terra? Neste sentido, fiéis à civilização que a tradição nos lega, se procurarmos entender as características das charneiras ordenadoras do novo desenho global, as polaridades dos novos rumos e os nexos dos novos fluxos, actuando, depois, em conformidade, não estaremos a contribuir para que Portugal permaneça actual e responsável, servindo no concerto das nações?