sexta-feira, 12 de junho de 2009

Carta de Elísio Gala

Em complemento dos dois posts anteriores, considero relevante deixar de seguida publicada com a concordância do autor, a carta que Elísio Gala nos dirigiu, a Francisco Moraes Sarmento e a mim, à qual faço referência no artigo que intitulei «Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa».
* * *
Caro Francisco Morais Sarmento
Caro Nuno Cavaco

Em momentos diferentes nos conhecemos.
No teu caso Francisco, já lá vão 27 anos. Conheci-te como Director da Revista Ensaio, tendo sido por teu intermédio e do meu irmão José Luís que conheci o Dr. Orlando Vitorino e todos os nomes dos mestres que nos educaram, nomeadamente Pinharanda Gomes, António Quadros, Afonso Botelho, Agostinho da Silva, António Telmo, Henrique Barrilaro Ruas. Em tertúlias várias, em cafés e restaurantes que já não existem, vivemos a alegria do debate das ideias, da elaboração de revistas, a Leonardo, os Cadernos de Filosofia (revista surgida no contexto da Universidade Católica e que se constituiu como crítica do que era e continua a ser a Universidade em geral, revista que eu dirigia e que tu compunhas graficamente e para a qual contribuías com tantas sugestões).
Estivemos juntos nas “lições” sobre o Organon que o Pinharanda generosamente nos ministrou, nas antigas instalações do atelier de arquitectura Promontório, onde aliás, foi concebida graficamente a revista Leonardo.
Estivemos juntos no lançamento da Campanha do Dr. Orlando à Presidência da República, no Porto, com a presença do saudoso Sant´Anna Dionísio. Estivemos juntos na organização de colóquios - Linhas Míticas do Pensamento Português, Sabatina de Estudos de António Quadros, homenagens a Álvaro Ribeiro e Dalila Pereira da Costa, entre outras.
No caso do Nuno, o conhecimento é mais recente, mas não menos rico e não menos caracterizado por iniciativas de natureza semelhante às que atrás referi.
As circunstâncias da vida, a família e o trabalho lançaram-nos, Francisco e Nuno, por caminhos diferentes. Os Mestres entretanto foram morrendo, deixando-nos com a sua obra e exemplo e com juízos que, por nos terem sido comunicados de modo individual, não tornamos públicos. Do grupo inicial de mestres com que tivemos a oportunidade de crescer, estão em nossa companhia, Pinharanda Gomes e António Telmo, que devemos mais do que tudo valorizar, ou, quando discordamos, perguntar primeiro a razão da tese ou teses suscitadoras da controvérsia. O caminho da crítica pública, sem primeiro questionar em privado quem nos merece o maior respeito e a maior gratidão, é trabalho que só beneficia os críticos da filosofia portuguesa, os Carrilhos, Eduardos Lourenços e Antónios Cândidos Francos que não sabem, não querem saber, ou evitam que outros saibam o que se contém no significado de filosofia portuguesa.
Com maior ou menor assiduidade no convívio, soubemos ir mantendo contacto, procurando, cada um de nós a seu modo manter a fidelidade à ideia de que a filosofia não é um curso, mas uma carreira, como disse Leonardo Coimbra a Álvaro Ribeiro.
A vida há-de julgar-nos sobre se procurámos servir a Pátria ou servir-nos da Pátria. A obra que cada um está ou ainda vier a realizar – falando, escrevendo, pensando, ou simplesmente vivendo de um modo tão exemplar que suscitará a indagação do porquê e do como de um tal viver – é que, penso, há-de aferir do nosso amor e contributo à filosofia portuguesa.
São estas palavras, neste contexto, dirigidas às duas pessoas com que tenho afinidade nesta Leonardo que acompanho quase diariamente. Muitas das críticas à Universidade que aí são feitas, concordo com elas… como poderia não deixar de concordar, se todas elas se sustentam no pensamento rigorosamente deduzido de mestres como Orlando Vitorino, António Telmo, Pinharanda Gomes, Agostinho da Silva, Afonso Botelho, António Quadros, além dos textos fundamentais de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Fernando Pessoa!?
Mas dirijo-vos estas palavras, porque não reconheço, no estilo, no conteúdo e forma da generalidade dos textos da Direcção desta Leonardo, a natureza do estilo, conteúdo e forma, do vosso pensar e escrever, Francisco e Nuno. Uma tal percepção é agravada pelo facto de, por altura da publicação de um texto do Dr. António Telmo na vossa revista, um dos membros da Direcção ter saudado o filósofo com o convite para a constituição de um triunvirato. Dele, não fazia parte o vosso nome. Pergunto-vos pois, se é que reconhecem em mim, ainda um amigo a quem é digno responder de modo educado, o seguinte: o último texto assinado pela Direcção também tem a vossa assinatura e portanto a vossa concordância? Deverei tomar o vosso silêncio como um sim!?
Sampaio Bruno incitava-nos a fazer guerra às ideias, mas a buscar a Paz entre os homens. Vejo, na generalidade dos escritos da Direcção, um estilo de demasiada guerra, ou melhor, de demasiado ataque pessoal aos homens, que desconheço nos vossos textos e que jamais vislumbrei – nem implicitamente – no pensamento, obra e exemplos dos mestres atrás citados. Invoca-se várias vezes Orlando Vitorino, um homem superior, atlético – como o qualificou Sant´Anna Dionísio na cerimónia de lançamento da campanha presidencial – viril. Amante das artes como era e atlético como sempre se nos manifestou, dava-nos exemplo daquele Homem perfeito e educado de que fala Platão como modelo da Paideia grega. O homem que viriliza o corpo sem se tornar um bruto. O homem que cultiva as artes, sem se tornar um efeminado.
Os mestres com que tivemos oportunidade de lidar ensinaram-nos, penso eu, um caminho difícil: não nos mentirmos a nós próprios, reconhecendo-nos como pessoas com limites; não nos considerarmos donos da verdade, nem os mais importantes ou perfeitos, brilhantes ou geniais, poderosos ou especiais.
Os mestres com que tivemos oportunidade de lidar ensinaram-nos, penso eu, o difícil caminho de, considerando-nos como pessoas comuns, aceitarmos a vida com os seus desafios e paradoxos, fazendo das fraquezas forças e contribuindo com a modéstia de uma ideia, de uma tese, de uma vida exemplar, para a grande obra de aproximação do Homem à Natureza, do Homem ao Homem, do Homem a Deus. Em suma, para a grande obra que também cabe à filosofia portuguesa.

Com um abraço amigo

Elísio Gala

quinta-feira, 11 de junho de 2009

LEONARDO, Revista de Filosofia Portuguesa

O texto que segue foi enviado no dia 8/6/2009 ao Francisco Moraes Sarmento para que fosse publicado na Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa com a maior brevidade possível face à gravidade do assunto que trata. Não foi publicado.

* * *

LEONARDO, Revista de Filosofia Portuguesa

Os sinais indicam a transposição de todos os limites admissíveis, roçando mesmo a bestialidade, afigurando-se caso para invocar a presença de um D. Quixote que, em tributo ao irmão Orlando Vitorino, a visão de António Telmo nos revela, “para derrotar os mágicos negros e as suas manipulações”.

A Leonardo tem seguido uma concepção editorial e uma linha redactorial cuja forma se revela repetidamente despropositada, esbanjadora, pouco objectiva, pouco séria, chegando mesmo a recorrer-se a algumas formas de expressão e termos que antevêem certos contornos de boçalidade em contextos nos quais não vislumbro motivo. Acresce a gravidade o facto de textos assinados pela Direcção veicularem esta imagem, mais diabólica que simbólica e pouco estimulante e abonatória ao exercício poético e filosófico. A Revista de Filosofia Portuguesa que se pretendia perdeu o rumo inicial e sobre ela recai uma névoa que tende a turvar as rotas possíveis.

Na tradição poética e filosófica que se iniciou com Sampaio Bruno e formalizou num "organon" principial com Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra na Renascença Portuguesa, a geração dos mais velhos está ainda representada por António Telmo e Pinharanda Gomes, que nos garantem o magistério da palavra e a iniciação numa tradição que tem vindo a aperfeiçoar a expressão poética e filosófica, assinalava o Director da revista no texto em que pretendia definir o lugar de Todos nós, os da Leonardo[1], e traçava a rota da viagem que nos compete.

Vêm estas palavras a propósito da resposta assinada pela Direcção ao comentário do leitor Pedro Sinde, na sequência do artigo do Miguel Bruno Duarte intitulado: “Os malefícios de Salazar ao Porto”. A resposta ao Pedro Sinde em nome da Direcção afigura-se inadmissível, pois não me revejo no essencial do seu conteúdo e muito menos na forma, o que de resto sucedeu em diversos outros escritos que para trás foram publicados.

Surpreende-nos ver um texto assinado pela Leonardo (para justificar a posição de um dos membros da Direcção) invocar a abstracção do “sentido comum” da figura de D. Quixote em detrimento da imagem que o filósofo lhe confere!... Não é a primeira vez que a Leonardo dá sinais desta ordem; é inaceitável que a Leonardo dirija ao público textos que traduzam uma inconsciência dominada por quadros mentais rasteiros, talvez oriundos de um determinismo estruturalista e materialista.

Seria conveniente que o Miguel Duarte esclarecesse o sentido que dá à expressão de guerreiro para que não estimule no leitor a tentação fácil de recorrer ao sentido comum de interpretação quanto ao entendimento da imagem que pretende projectar do Orlando Vitorino.
Se entendermos a guerra como a expressão dramática do conflito último entre os homens depois de entre eles aparentarem esgotados todos os argumentos que capacitem a via simbólica, em cujas consequências relevam a destruição das existências e o domínio dos espíritos diabólicos, no palco em que tal brutalidade ocorre vislumbramos os guerreiros seus excelsos actores…
Sendo o actor, aquele que faz, com uma virtualidade que só a ele pertence, o que há de significativo na acção[2], fica o ofício do actor todo aí: as palavras são da personagem, o outro do actor, e ao emprestar-lhe, com o corpo visível que ela não possui, a voz que ela também não tem, da personagem recebe o actor as palavras que não são suas[3]. Embora reconheça superior nobreza na figura do actor cuja vida por definição toda ela ocorre de forma significativa, e assim o guerreiro, temos que esse não se afigurava o perfil de Orlando Vitorino, até porque nunca perdia a razão. Essa era uma capacidade de abertura ao espírito que o assistia e que lhe garantia a não necessidade da guerra, a qual entendia que só a estupidez e a visão parcial e obtusa das questões poderia gerar, como em algumas ocasiões ele nos referiu. De resto, em palestra que promovemos para estudantes de urbanismo e de arquitectura da Universidade Lusófona, lembro de Orlando dissertar sobre aquelas artes que entendia não ser conhecedor profundo, utilizando por isso o recurso ao conhecimento e à experiência que detinha nas artes do palco; começou então por nos contar que no teatro fez de tudo um pouco, foi empresário, dramaturgo, encenador… só nunca foi actor. Efectivamente tenho que Orlando Vitorino não era um guerreiro, até porque me parece incompatível com a figura do filósofo.

Só quem não tem o sentido do sagrado não percebeu que a forma como Miguel Duarte referiu as intenções de Telmo para com o irmão profanam sim senhor a relação duplamente fraternal que ambos perfilham, de sangue e de pensamento, pelo que parece compreensível a dedução de Pedro Sinde em direcção a uma eventual intenção caluniosa de Miguel Duarte sobre António Telmo. Mesmo que Miguel não pretendesse deixar implícita a ideia que António Telmo tratou inferiormente o irmão Orlando, essa foi a leitura de, pelo menos, um leitor, o Pedro, já que foi o único que se pronunciou. Mas, já agora, o Pedro não se encontra só nessa leitura, pois sei também que o Elísio Gala a fez[4], tal como eu a fiz.

A obsessão da Leonardo sobre Sesimbra já se torna despropositada. Não se afiguram questões filosóficas a ser tratadas, em vez de se insistir ridiculamente em discutir pretensas e obscuras intenções dos organizadores dos colóquios de Sesimbra de quererem silenciar sepucralmente o pensamento de Orlando? Parece porém natural que o evento que pretendeu colocar na ordem clara das mentes atentas a renovação do espírito de 57, por motivação e esforço dos convivas de António Telmo, evidentemente se alimentou, bebeu e inspirou no seu testemunho, em sua relevante autoridade e alto magistério. Sem dúvida, a Leonardo teria seguido outra via, mas a Verdade ambicionada parece-nos a mesma. O magistério e autoridade de António Telmo no evento em causa afiguram-se suficientes para que se lhe deva respeito e confiança. A voz, a força e o lugar de Orlando Vitorino no escol da filosofia portuguesa em geral, e no movimento de 57 em particular, foram garantidos e ficaram então bem marcados no contributo, na pena e na palavra de seu epígono Francisco Moraes Sarmento. Outros terão contribuído para relevar seus mestres, ou as teses de pensadores decisivos no movimento. E os universitários de serviço lá estiveram para, felizes e contentes, da verdade nada dizerem, mas, quem sabe, como sempre parece, quais agentes secretos, ali foram tentando recolher informações e a estrutura dos acontecimentos para depois em seus laboratórios, sob técnicas distantes de qualquer simples mortal, tomados de espírito ingénuo tudo deformarem e até à exaustão decomporem, sabe Deus com que propósito ou finalidade… Portanto, o painel estava completo e o desenho realizado sob a justa batuta de António Telmo.

São indignas as veredas do espírito que insuflam insultos, calúnias ou boçalidades quando as suas direcções pretendem atingir companheiros de viagem. Tanto mais interditas se devem afigurar essas veredas quando esses companheiros são autoridades que sacrificaram as suas vidas em prol da actualização daquele pensamento filosófico cujo espírito, invocando a ordem magistral de Orlando Vitorino, os da Leonardo tanto pretendem catalizar auto-proclamando-se como que seus fiéis depositários, porta-estandarte, justos guardiães e decisivos continuadores da ortodoxia filosófica da pátria portuguesa. Ora o espírito corre independente da vontade dos homens, e recebe-o quem estiver preparado no sítio e no tempo adequados; não foi, não é, nem será exclusivo da Leonardo, por simples vontade dos seus responsáveis, a permanência e a contenção do espírito filosófico dos portugueses, mesmo aquele dado a conhecer por Orlando. Outros, para além dos que fazem actualmente a Leonardo usufruíram e beneficiaram forte e seriamente do convívio tertuliar e magistral do Filósofo. Entre eles, incontornáveis e na primeira linha: João Luís Ferreira, Gonçalo Magalhães Collaço, e Elísio Vaz e Gala. Cada um certamente actualizando e personalizando o espírito que mais importa, fiéis ao magistério que receberam, no uso e na superação dos meios, contra-tempos e circunstância com que se deparam. Porém, estes, pouco ou nada têm colaborado com a Leonardo, mas sabemos que, lá, por onde e quando cada um deambula, caminha e actua, as suas vidas marcam sempre em alerta às coisas do espírito e fiéis ao magistério que Orlando generosamente lhes disponibilizou. Portanto, não revejo n’Os da Leonardo a detenção do exclusivo do pensamento filosófico português, embora considere sem dúvida que o Francisco Moraes Sarmento enquadra o trio de primeira linha acima referido.
Para a continuidade séria da revista, e para que cumpra os propósitos a que se propôs, não podem Os da Leonardo exigir para si o exclusivo do pensamento português, nem do magistério orlandino, nem da filosofia portuguesa. Até porque o pensamento é o órgão da liberdade, e sobre qualquer homem pode ocorrer derramar-se o espírito que mais importa, e no escol da Filosofia Portuguesa fora da Leonardo diversos parecem os indivíduos que se encontram abertos e disponíveis à sua actualização. Lembre-mo-nos que a geração dos mais velhos está ainda representada por António Telmo e Pinharanda Gomes, que garantem o magistério da palavra e a iniciação numa tradição que tem vindo a aperfeiçoar a expressão poética e filosófica.

Nunca deverá a revista desviar-se na sua concepção editorial e linha redactorial do exercício de ordem poética e filosófica, muito menos quando os temas, assuntos, ou notas tratados reportam, invocam ou recorrem aos mestres e autores consagrados do movimento.

Pinharanda Gomes e António Telmo não são propriamente uns universitarões nem uns politicozinhos da nossa praça, muito menos uns socialistazecos desses que ou lhes somos indiferentes ou a lidarmos com eles a única linguagem que entendem será eventualmente aquela que o aristotélico brasileiro Olavo de Carvalho[5] por vezes utiliza, quando a eles se dirige.
(Francamente, à primeira vista poderíamos considerar que o Miguel não está a discernir o alvo, mas nos seus escritos já deu provas de não ser assim tão míope, de onde torna legítimo questionarmos se não persegue outra intenção alheia à filosofia portuguesa.)
Efectivamente, são os dois filósofos autoridades a quem antes de tudo devemos respeito e reverência, e a quem devemos muito do pouco que sabemos…
Assim em meu entender, ou a Leonardo retoma a via da revista de filosofia portuguesa a que se propôs, ou deve encerrar.

Por fim, enquanto membro da Direcção da Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, quero aqui deixar um pedido de desculpa ao António Telmo e ao Pinharanda Gomes, assim como a todos os leitores sérios da revista, pelos textos e palavras despropositadas que aqui foram veiculadas.

Nuno Cavaco
Quarteira, 8/6/2009

[1] Francisco Moraes Sarmento, Leonardo Revista de Filosofia Portuguesa, edição electrónica, 2008.
[2] O Discurso sobre o que o teatro é, texto que encerra a primeira edição de Tongatabu, de Orlando Vitorino (Teoremas, Lisboa, 1977).
[3] As Regras ignoradas da arte de bem representar aqui publicadas para que nelas se louvem os actores que representarem Tongatabu, texto que abre a segunda edição de Tongatabu e Nem Amantes Nem Amigos, de Orlando Vitorino (Teoremas de Teatro, Lisboa, 1965).
[4] A propósito, Elísio Gala escreveu uma carta dirigida ao Francisco Moraes Sarmento e a mim.
[5] http://olavodecarvalho.org/

Carta a Francisco Moraes Sarmento

Deixo a título de registo as palavras que seguem, as quais foram enviadas por correio electrónico ao Director da revista Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, Francisco Moraes Sarmento, com o conhecimento de João S. Botelho e Miguel B. Duarte (constituíamos os quatro a Direcção da revista), no dia 8/6/2009. Importa saber que até ao momento presente não recebi a propósito qualquer resposta ou contacto, verificando porém que, sem que me fosse dado conhecimento prévio, hoje o meu nome deixou de constar naquela Direcção...

* * *

Caro Francisco,

Desde que foste embora não sei ao certo quem tem sido o responsável pela publicação dos textos na Leonardo. Nunca tive conhecimento prévio de qualquer texto, nota ou comentário desde então publicados. De resto, já em outras ocasiões eu te manifestei desagrado sobre alguma forma e conteúdo do que vinha saindo na revista.
A questão, culminante no texto assinado por Direcção em resposta ao Pedro Sinde por comentário de sua autoria sobre o artigo do Miguel Duarte, "
Os malefícios de Salazar ao Porto", ultrapassou os limites do desrespeito e da falta de seriedade sobre as autoridades magistrais da filosofia portuguesa, e para com os leitores atentos da revista.

Este entendimento levou-me a escrever o texto que te envio em anexo, o qual pretendo que seja publicado na revista com a maior brevidade. Tendo em conta o conteúdo do mesmo, e se pretendemos dar continuidade à revista, mais considero que Miguel Duarte deve abandoná-la.

Um abraço,

Nuno.

terça-feira, 3 de março de 2009

Entrevista - I

Orlando Vitorino esclarece João Luís, 1988 *


FILOSOFIA E ARQUITECTURA OU NÃO HÁ IMAGEM SEM LEGENDA


J.L. - Quer falar de arquitectura para uma revista que se intitula “Utópica”?
O.V. - Porque não? A contradição pode ser estimulante.
J.L. - Onde está, neste caso, a contradição?
O.V. - É que toda a arquitectura é tópica. A utopia é o que não tem lugar. Ora nada pode haver sem lugar, o que é sobretudo evidente na arquitectura.
J.L. - Como entender que no nosso tempo - e em todos os domínios, desde a política à, como vemos, arquitectura - se situem na utopia todos os projectos revolucionários?
O.V. - Entendendo que esses projectos não consideram a utopia, e não se instalem nela, como algo de definitivo e dogmático, mas a vejam antes como um caminho que levará, naturalmente, ao abandono do utópico. Martin Bubber, grande mestre contemporâneo dos judeus, escreveu um livro sobre “Os Caminhos na Utopia”.
J.L. - A utopia é, nesse caso, um método de conhecimento?
O.V. - A utopia é, primeiro, uma expressão de desespero, o desespero de não se encontrarem satisfações, nas condições deste mundo real em que vivemos, para os desejos e ambições dos homens. É, depois, um fenómeno caracteristicamente moderno, pois só surge com o Renascimento, embora haja certas interpretações estultas que chamam utopia à “República” de Platão. É, por fim, um género literário, como as novelas de cavalaria, que conta algumas obras notáveis (“Utopia” de T. Morus, “A Cidade do Sol”, de Campanella) entre numerosas mediocridades internacionais, entre elas “O Capital”, de K. Marx, cuja natureza de literatura utópica reside na afirmação da existência de uma abundância de produtos capaz de satisfazer todas as carências da humanidade, afirmação que condiciona todo o cientismo que o livro pretende expor.
Nos últimos tempos, o sentido das “utopias” literárias inverteu-se. Uma vez realizadas algumas delas - as comunistas, especialmente - e confirmando-se que toda a utopia é a abolição da liberdade (as políticas são sempre o controlo de toda a existência dos homens, as artísticas são sempre o condicionamento da imaginação) o género literário passou a ser anti-utópico e apareceram obras como o “Brave New World”, de Huxley, o “1980” ou “O Triunfo dos Porcos”, de G. Orwell, o “Eumeswill”, de E. Junger, que são as mais radicais condenações do utópico.
J.L. - Os “caminhos na utopia” conduzem, portanto, à anti-utopia?
O.V. - Sim. Mas há sempre a possibilidade de entender a utopia como um idealismo provocado por uma justa reacção ao que se encontra institucionalizado. Neste caso, dir-se-à utópica a procura de caminhos (já não na utopia como queria M. Bubber) que o institucionalismo - regimes políticos, universidades, opinião pública... - tem por função impedir. Creio que é este o caso da sua revista “Utópica”. Podemos, portanto, conversar.
J.L. - Diga-me então: que é a arquitectura?
O.V. - É lugar e proporção.
J.L. - Que é o lugar?
O.V. - É, primeiro, a negação do espaço.
J.L. - Como nega o lugar o espaço?
O.V. - Marcando-lhe limites, definindo-o.
J.L. - A definição é negação?
O.V. - Foi o que nos ensinou Espinoza, que era geómetra, ao pôr como princípio de imaginar e pensar que “toda a afirmação é negação” pois nega o que fica fora do que se afirma.
J.L. - Onde começa a arquitectura?
O.V. - Começa ou na Grécia ou no Céu ou no Céu e na Grécia.
J.L. - E o Egipto?
O.V. - Aí, foi só geometria. Faltava a proporção para ser arquitectura.
J.L. - Julguei que na Grécia só havia começado a filosofia.
O.V. - A filosofia é o embrião que contém todas as artes.
J.L. - Tudo, então, é filosofia?
O.V.- Nada é sem filosofia.
J.L. - Onde está, no embrião, a arquitectura?
O.V. - Na geometria.
J.L. - Foi por isso que Platão escreveu sobre os umbrais da escola: “só entram os que são geómetras”?
O.V. - Exactamente.
J.L. - Que é a geometria?
O.V. - É a primeira determinação do lugar e a primeira negação do espaço.
J.L. - Diz-se que os gregos ignoraram o infinito. Foi por serem geómetras?
O.V. - O infinito é a negação do limite, portanto do lugar. Onde está o infinito, não há geometria. há só matemática.
J.L. - Os gregos não foram matemáticos?
O.V. - Aristóteles deixou escrita a refutação da matemática. Dos modernos, só Hegel compreendeu e repetiu a refutação. Dos contemporâneos, só Leonardo Coimbra.
J.L. - Fala em Leonardo Coimbra. É um pensador português que nós temos como o mais importante filósofo deste século. Com ele (e já com o filósofo português que o precedeu, Sampaio Bruno) a negação do espaço, e também do tempo, própria dos gregos, é substituída pela distinção entre espaço homogéneo e espaço heterogéneo. Como se situa esta distinção em referência à concepção do lugar?
O.V. - O lugar supõe, além da definição do espaço, a heterogeneidade que torna possível a definição. A noção de espaço acaba por ser resultante da noção de lugar, ao contrário do que acontece nas culturas do norte da Europa nas quais o lugar ou não é atendido ou é apenas o modo abstracto de um espaço homogéneo.
J.L. - É aí que se funda a distinção entre as arquitecturas nórdicas e a portuguesa, bem como a dos países meridionais ou mediterrânicos?
O.V. - Creio bem que sim.
J.L. - A arquitectura portuguesa, bem como a nossa paisagem ou o nosso país, é composta de lugares, não se insere num espaço homogéneo.
O.V. - Creio que isso explica que tenhamos sido os criadores do barroco, como os gregos e os italianos foram os criadores do clássico.
J.L. - Que fica para os nórdicos?
O.V. - Ficará a arquitectura funcional. Isto é, a arquitectura condicionada, orientada e determinada pelas carências sociais, sobretudo pelo desacordo entre uma natureza (paisagem, clima, ritmos agrários, etc.) agreste e a livre existência dos homens. Este desacordo manifesta-se, por exemplo, na distinção entre o burgo, que é nórdico, e a cidade, que é mediterrânica. O burgo fecha as populações dentro de muralhas que, não só as defendem mas também as isolam. A cidade é sempre aberta: aberta à paisagem, à natureza, à hospitalidade e aos estrangeiros. E não se diga que o burgo, surgindo na Idade Média, foi condicionado pela exigência da segurança face às ameaças guerreiras. Nós, sobretudo em Portugal e Espanha, durante séculos sofremos, como os nórdicos não sofreram, essas ameaças. Todavia não construímos burgos, mas cidades, como os antigos gregos e antigos romanos. Dir-se-ia que os nórdicos são incapazes de imaginar, pensar e erguer cidades. Quando nós as erguíamos, eles construíam burgos. E hoje, em que já se não podem invocar as ameaças guerreiras, eles erguem aquilo a que já chamaram tecnópolis, dando por passada a época das cidades. É este o nome utilizado pelo pensador americano Harvey Cox, da Universidade de Harvard, num livro famoso, publicado em 1965, “A Cidade Secular”.
J.L. - Tudo isso justifica a existência, entre nós, de uma arquitectura original que está por afirmar ou cuja afirmação tem sido impedida.
O.V. - Sem dúvida. E aí nos refugiamos no utópico para resistirmos à repressão do institucionalismo.
J.L. - Essa arquitectura original foi levada para oriente e ocidente, para o Japão e o Brasil: o barroco, o Bom Jesus e o Aleijadinho, a arquitectura colonial (a religiosa, a civil e a urbana, Nagasaky)...
O.V. - V. conhece o caso de Nagasaky?
J.L. - Decerto. Foi um brasileiro seu amigo, o Arquitecto Carlos Moura, quem estudou a singularidade de Nagasaky, uma cidade traçada e erguida no Japão pelos portugueses e onde foi lançada, logo a seguir a Hiroshima, uma bomba atómica.
O.V. - Mas enquanto Hiroshima se pulverizou, Nagasaky resistiu, o que é explicado pelas características portuguesas do seu urbanismo arquitectónico.
J.L. - Disse que a arquitectura não é só o lugar, é também a proporção. Que é a proporção?
O.V. - É o que o arquitecto acrescenta à geometria. O geómetra define o lugar segundo a medida, que é o homem. Os gregos disseram: “o homem é a medida de todas as coisas”.
J.L. - Como pode o homem ser a medida?
O.V. - Sócrates viu na legenda, que estava gravada sobre os umbrais do templo de Delfos, o princípio “conhece-te a ti próprio”. Só depois de se conhecer a si próprio pode o homem ser a medida.
J.L. - A medida não é, pois, geométrica?
O.V. - Não. A geometria utiliza a medida. Quem dá a medida é a filosofia. Utilizar a medida é pensar. Por isso pensar é a mesma palavra que pesar. A epígrafe “aqui só entram geómetras” significa: “aqui só entram os que pensam”.
J.L. - Definir o lugar é, então, pensar o lugar como lugar do homem?
O.V. - Não há só o homem. Também não há só o lugar do homem. há o lugar de Deus, há lugares de outros, seres e ideias. há a cidade celeste e há a cidade terrestre. A diferença entre a Grécia e o cristianismo está em Santo Agostinho que colocou na terra “a cidade de Deus” como em Cristo encarnou a divindade.
J.L. - Qual o lugar arquitectónico do homem. É a cidade? É a casa?
O.V. - Hegel, que era nórdico e, como protestante, “trazia o Deus na barriga”, disse que a primeira obra arquitectónica é o templo a que chamou “a casa de Deus”.
J.L. - Está certo?
O.V. - Está errado. Tudo o que é do homem tem início no homem.
J.L. - Então o início está na casa do homem?
O.V. - O primeiro arquitecto foi o que imaginou a rua. Depois da rua é que vem a casa e, depois da casa, o templo.
J.L. - Se bem entendo, a ordem é esta: a rua, a casa, o templo e, em seu conjunto, a cidade.
O.V. - É isso, mas, previamente, tem de se determinar o lugar da cidade. Será uma paisagem de colinas para que haja os “vales de lágrimas” bíblicos onde se situarão os edifícios de trabalho, para que haja encostas onde se traçarão as ruas em espiral ladeadas pelas casas de morar, para que haja montes onde se erguerão os templos.
J.L. - Como se determina o lugar?
O.V. - Conhecendo o arcano. Todo o lugar é lugar de um arcano que está presente em todo ele e se identifica com todo ele.
J.L. - Que é o arcano?
O.V. - É o que no lugar se guarda, como numa arca, a arca da aliança bíblica por exemplo, ou o que guarda o lugar, como pensavam os maçons quando chamavam arcano ao que hoje chamam loja. Ou ainda o que é guardado pela arca e simultaneamente a guarda, como o homem, arcano da casa.
J.L. - O homem é, pois, um arcano?
O.V. - Sim.
J.L. - há outros arcanos?
O.V. - Sim. Sensíveis e inteligíveis, nomináveis e inomináveis.
J.L. - A arquitectura, a obra arquitectónica, varia segundo o arcano?
O.V. - Segundo o arcano e segundo o conhecimento que o arquitecto tem do arcano. Um deficiente conhecimento de Deus impede a arquitectura de um templo perfeito como o da Acrópole, o dos Jerónimos em Lisboa, o da Sagrada Família em Barcelona. A ignorância de Deus inibe a arquitectura de um templo.
J.L. - O mesmo acontecerá quando o arcano é o homem?
O.V. - Inevitavelmente.
J.L. - Quando se refere ao homem refere-se ao indivíduo, à humanidade, à sociedade?
O.V. - Só o indivíduo é homem real. Só ele é arcano. Só ele pode e deve conhecer-se a si próprio.
J.L. - Mas há uma arquitectura social: casas, bairros, até cidades e burgos de finalidades sociais. E há famosos arquitectos dessa arquitectura. Le Corbusier, por exemplo.
O.V. - Não é arquitectura, não são arquitectos. São funcionários sociais ou só funcionários pois a sua “arquitectura” é em função de, não possui o princípio ou a arché da qual se deduz. A arquitectura faz-se a partir de, não para. Faz-se a partir do homem, não, não para o homem.
J.L. - há formas arquitectónicas a que não podemos negar um certo carácter social. Um teatro, por exemplo.
O.V. - Não há aí nenhum carácter social. Trata-se de uma arquitectura a partir de um arcano que será difícil, talvez impossível, de entificar pois pertence ao mundo dos inteligíveis, ao mundo das ideias. O arquitecto faz o edifício de um teatro a partir de uma certa concepção do teatro que varia de civilização para civilização, como faz um templo a partir de uma concepção ou ideia da divindade, que varia de religião para religião.
J.L. - Quer dizer que há vários tipos de arquitectura teatral? Quer dizer que de cada concepção do teatro se deduz um tipo diferente de arquitectura?
O.V. - Exactamente.
J.L. - Pode exemplificar...
O.V. - Consideremos três modelos de arquitectura teatral mais marcados: o grego, o elizabetheano e o romântico. O modelo grego sabemos como é, um círculo que o diâmetro corta, destinando-se uma metade para os actores, a outra metade para os espectadores. O arcano desta forma é, primeiro, uma concepção do mundo em que co-habitam deuses e homens, seres inteligíveis e seres sensíveis, essências e aparências; é, depois, a consequente concepção do teatro como o confronto entre essências e aparências representado no conflito entre deuses e homens. O círculo arquitectural figura o lugar que tem por arcano o mundo não infinito cujas duas metades se vão contrapor no espectáculo dramático.
O modelo elizabethiano (o do “globo” de Shakespeare, dos corrales espanhóis e dos pátios portugueses) é também o de um círculo que define o mundo. Mas nele não estão divididas suas duas metades pois a divindade inseriu-se no mundo pela mediação de Cristo. E o podium ou palco fica no centro do círculo como a acção dramática decorre no centro dos homens que a ela assistem e até interferem como coisa sua.

Finalmente, no modelo romântico, o circulo ovaliza-se e um corte secante, tão diminuto quanto possível e tendendo para o ponto tangencial, marca o lugar dado à representação dramática. O teatro é, então, o lugar de encontro entre a realidade e o sonho, entre o finito e o infinito, entre este e o outro mundo. Na linha oval dentro da qual se colocam os espectadores a arquitectura representa este quotidiano mundo real dos homens; no ponto tangencial para que tende o corte secante, estará a possibilidade ou a abertura para o outro mundo, infinito e onírico, irreal e ideal. Creio ter-lhe dito o suficiente para demonstrar como a arquitectura de um edifício teatral se deduz da concepção do que é a arte dramática. Este exemplo pode constituir um paradigma de como toda a arquitectura se deduz de seu princípio, arcano ou arché e não é em vão que se chama arquitectura.


*Conversa entre o Filósofo Orlando Vitorino e o então estudante da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, João Luís Ferreira; foi publicada em 1988 em língua inglesa pela revista Utópica, edição conjunta de diversas associações de estudantes de arquitectura europeias, entre as quais a da F. A. U. T. L.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Arquitectos - II

INICIAÇÃO AO DESENHO PARA UM APRENDIZ DE ARQUITECTO

Do Propósito

No início da formação de um arquitecto, pelo desenho, procura conduzir-se o aprendiz à descoberta do domínio dos instrumentos e das técnicas adequados à expressão das suas ideias, firmando e enquadrando gradativamente a sua postura na sublimação da perspicácia para detecção das subtilezas que caracterizam os mundos, no aperfeiçoamento e sublimação de uma memória selectiva, no desencadeamento de um sentido ético que informe a vida de arquitecto e determine assim a estética e a poética da sua obra futura e, em consequência, na formação de um sentido deontológico para a prática da profissão.

Se, por um lado, o conhecimento do sítio próprio e das condições próprias para a conformação do objecto arquitectónico decorrem do entendimento de uma série de indicadores ou sinais que, graciosamente, o domínio da natureza concede ao arquitecto, habilitando-o a deduzir e a descobrir vias importantes para a solução adequada a cada solicitação específica, sendo de certo modo esse o foco principal das respectivas opções técnicas; facto que leva a que se procure despertar o aprendiz, mediante exemplos concretos, para os efeitos e condicionamentos que a natureza (em especial a circunstância geográfica e o clima) exerce sobre toda e qualquer manifestação humana, principalmente na arquitectura. Por outro lado, se “O homem apreende por imitação as primeiras noções”, conforme diz Aristóteles na sua Poética, o aprendiz deverá ser confrontado com circunstâncias das quais procurará entender as respectivas orgânicas naturais. Interessa assim que o aluno se depare com realidades não dependentes do homem, para que estude, compreenda e descubra a razão das respectivas formas, passando fatalmente a estabelecer e seleccionar hierarquias ordenadoras daquilo que descobriu – consciências que deve guardar em sua memória.

Do Desenvolvimento

As sessões devem incidir na prática de exercícios, pontuados de quando em vez por exposições teóricas, preparadas umas, improvisadas outras emergentes de circunstâncias que assim o exijam.

A sessão inaugural deve consistir numa introdução ao programa, a partir da qual se estabelecem diálogos e se desenvolvem exercícios tendo como finalidade perscrutar a situação de cada aprendiz em relação à vida, à arquitectura e ao desenho. Para o bom e eficiente funcionamento do curso, devem ser expostas algumas regras básicas e ser indicado o material imprescindível a utilizar nas sessões.

O curso deve dar-se de acordo e conforme a sequência de temas que passamos a enunciar:

i) Os Elementos Básicos da Expressão do Desenho

i.i) Sustento Mental e Fundamento Operativo – Sessão teórica, auxiliada por imagens, onde se procuram expor os fundamentos e as práticas da expressão do desenho, assim como as diversas posições mentais e operativas determinantes relativamente ao tema.

i.ii) O Ponto, a Linha e a Mancha – Sessões onde se desenvolvem exercícios de descoberta das potencialidades e aplicações dos elementos básicos da expressão do desenho, experimentando diversos suportes bem como diversos instrumentos de registo – uns “pré-fabricados”, outros improvisados pelo aprendiz.

ii) A Luz

ii.i) A Luz Reveladora dos Mundos – Sessão teórica, auxiliada por imagens, onde se procura despertar para a primazia da luz sobre os corpos que em consequência se revelam na conjugação das respectivas texturas, cores e sombras, expondo os enquadramentos científicos e filosóficos do tema.

ii.ii) As Texturas – Sessões onde se desenvolvem exercícios em que se procura num sentido a compreensão de como as formas epidermicamente se organizam – lisura?… ou polimorfia dos corpos que constituem os mundos?… Noutro sentido procura-se a adequação dos elementos base da expressão gráfica, e tridimensionada, às realidades que desejam representar, assim como visam escolhas e aplicações certas de respectivos suportes e instrumentos de registo.

ii.iii) As Ilusões e as Sombras – Sessões onde se desenvolvem exercícios em que se procura exercitar, treinar e libertar a imaginação do aluno a partir do estudo dos efeitos resultantes da incidência de luz e consequentes sombras sobre os corpos; com estes exercícios procura-se também a adequação dos elementos base da expressão do desenho às imagens que desejam representar, assim como as escolhas e aplicações certas de respectivos suportes e instrumentos de registo.

ii.iv) As Cores – Sessões onde se desenvolvem exercícios de introdução ao entendimento dos fenómenos cromáticos – cor, gradação de luz?… ou gradação de sombra?… as cores e os sons, as cores e as temperaturas, as cores e os cheiros e as cores e os sabores… as harmonias das cores; e ainda onde se procura descobrir os materiais de registo e suporte adequados às cores que se quer representar.

iii) A Geometria

iii.i) “Aqui só entram os que são geómetras” – Sessão teórica, auxiliada por imagens que, partindo da inscrição que Platão colocou à entrada da sua academia, procura despertar e estimular o aluno para a necessidade do exercício, treino e interpretação, no domínio e na observação das estruturas e orgânicas ocultas das formas, ou seja as geometrias que as informam, deformam ou conformam.

iii.ii) Medida – Sessões em que se desenvolvem exercícios que procuram nas expressões das ideias a consciência, o conhecimento e o domínio das respectivas extensões e limites de existência.

iii.iii) Proporção – Sessões em que se desenvolvem exercícios que em articulação sequencial aos anteriores, visam promover o entendimento e a consciência das relações possíveis entre todos os componentes que formam os mundos – entender em cada corpo as relações de medidas em si e com o exterior, e o domínio das escalas como escadas hierarquizantes.

iii.iv) A Perspectiva – Sessões em que se desenvolvem exercícios que procuram capacitar o aprendiz nas possibilidades de representação de intenções tridimensionais sobre suportes bidimensionais – a situação filosófica da perspectiva e as técnicas de representações gráficas possíveis, nomeadamente o entendimento da Luz e as gradações de tons, assim como a consciência das escalas e a importância das formas geométricas e da proporção na definição das formas.

Artes - I

CONTRIBUTO
PARA UM
PROGRAMA DE INICIAÇÃO AO
DESENHO EM
DOIS
ANDAMENTOS
.

Principalmente chamo DESENHO aquela ideia criada no entendimento criado, que imita ou quer imitar as eternas e divinas ciências incriadas, com que o muito poderoso Senhor Deus criou todas as obras que vemos,
e compreende todas as obras que têm invenção, ou forma, ou fermosura, ou proporção, ou que a esperam de ter, assim interiores nas ideias, como exteriores na obra; e isto baste quanto ao Desenho.
Francisco de Holanda
.
.
.
PROPÓSITO

O mundo é todo o tangível e o inteligível ao alcance do homem.
Neste mundo que nos é dado viver, todo o sensível que se nos depara, ou é anterior ao homem e dele não depende, ou é posterior ao homem e dele pendente. Ali vemos a natureza, aqui a arte; esta imita aquela. Toda a arte é análoga à natureza. Só pela filosofia, pela arte ou pela religião, o homem compreende o mundo.

E se a arte é uma árvore frondosa cujas antigas e principais ramificações são o canto, a música, a dança, a pintura, a escultura, a arquitectura, o teatro, a literatura e a poesia, a partir das quais emanam todas as outras menores artes, o desenho é o seu portentoso e pujante tronco. É pela degradação do desenho que a evanescência da arte contribui para a desolação actual do mundo, pelo que se torna imperioso reabilitar o desenho no ensino das artes. Neste sentido procuramos contribuir com um programa genérico destinado ao desenvolvimento e aprendizagem do desenho no ensino das artes. Ao mestre interessado e responsável caberá a adaptação de metodologia, e a aplicação e o uso dos meios que entender mais adequados a fazer desabrochar no aprendiz a expressão livre da sua visão e do seu conhecimento.

Pretende-se que pela actividade que o desenho supõe, o aprendiz desenvolva as suas capacidades especulativas, ou de entendimento, compreensão e reflexão de imagens.
Queremos significar a imagem como a expressão, na mente, de uma ideia, portanto “cosa mentale” segundo a expressão consagrada. Diz-se da ideia o que em cada indivíduo se anuncia como original e que o motivará no sentido da verdade. O entendimento corresponderá à possibilidade, abertura e capacidade, em cada indivíduo, para a formação de uma ideia; a fixação, a articulação e a concentração dos dados para a possível definição da ideia, a isso chamamos compreensão; à projecção, configuração e materialização da imagem chamamos reflexão. O desenvolvimento destas três actividades processar-se-á gradativa e organicamente do entendimento até à reflexão, não sendo, pois, possível a reflexão sem a compreensão, nem a compreensão sem o entendimento. Neste sentido o entendimento é um dom. A este acto que pressupõe uma duração temporal, chamaremos especulação; à actividade perene de que esse acto depende e se suporta chamaremos pensamento. No pensamento artístico a matéria será o sensível que finalmente pode admitir, moldar e abrigar a ideia na forma de imagem, pois as imagens é que são o conteúdo desta disciplina. Neste sentido, advém como objectivo da aplicação deste contributo programático habilitar o aprendiz com as técnicas de representação ou de desenho que lhe sejam acessíveis.

DESENVOLVIMENTO

O programa de desenho será desenvolvido em dois andamentos sucessivos: o primeiro, Desenho I, tratará da compreensão das formas da natureza, a fim de habilitar o aprendiz a imaginar as realidades que o cercam; o segundo, Desenho II, tratará da compreensão das formas da arte, tendo como finalidade e em sucessão articulada com o andamento anterior, habilitar o aprendiz a conhecer as representações que essas realidades tiveram na história das artes.
.

PROGRAMA

Desenho I

Motivo

Compreensão das formas da natureza, em desenvolvimento gradativo, do mais bruto ao mais sublime.

Unidades Temáticas

São quatro as unidades temáticas a desenvolver na seguinte sucessão:

1ª Estudo dos Minerais;

2ª Estudo dos Vegetais;

3ª Estudo dos Animais;

4ª Estudo do Homem.

Para cada ente dado a estudar em cada uma das unidades temáticas, será desenvolvida uma abordagem às suas seguintes características:

- Medida (sua extensão no real);

- Proporção (relação de medidas em si e com o exterior);

- Luz (ilusões, sombras e cores);

- Inserção (situação de emergência na natureza);

- Desenvolvimento (movimento e adaptação à natureza);

- Destino (possíveis consequências naturais ou artificiais).

Para cada ente dado a estudar em cada uma das unidades temáticas, o aprendiz poderá ser estimulado a organizar a sucessão da sua abordagem pela ordem seguinte:

1º - Procura – Período em que irá dar-se a definição progressiva da ideia inerente àquilo que está em estudo, por meio de registos introvertidos;

2º - Objectividade – Período adequado á projecção e exposição conclusiva do que estudou, por meio de registos extrovertidos que permitam uma leitura objectiva do que se pretende expressar;

3º - Subjectividade – Período correspondente à projecção e exposição conclusiva do que estudou, mostrando uma perspectiva subjectiva do que se pretende.

Desenho II

Motivo

Compreensão das formas da Arte enquadradas nos diversos géneros artísticos e considerando as respectivas obras como imagens no sentido que definido nas palavras de introdução. Este andamento do curso segue como complemento de Desenho I.

Unidades Temáticas

Consideremos nove géneros artísticos e a cada um façamos corresponder uma unidade temática. Assim, sendo as seguintes as nove unidades temáticas deverão as mesmas desenvolver-se na sucessão que também segue:

1ª - Estudo do Canto;

2ª - Estudo da Música;

3ª - Estudo da Dança;

4ª - Estudo da Pintura;

5ª - Estudo da Escultura;

6ª - Estudo da Arquitectura;

7ª - Estudo do Teatro;

8ª - Estudo da Literatura;

9ª - Estudo da Poesia.

Pretende-se pois que o aprendiz seja estimulado a descobrir as regras possíveis para a elaboração das obras em cada uma destas artes, com especial relevo para aquelas em que a representação é visual; será estimulado a descobrir como a matéria ou o sensível, especialmente o visual, condicionam a obra de arte; e ainda a descobrir as regras desse condicionamento.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Entre a Mimosa do Camões e Linda-a-Velha com João Camossa

CRUZ-QUE-BRADA



Às Terças-feiras jantávamos na Mimosa do Camões, onde por vezes João Camossa se juntava a nós. Depois, quando íamos levar Henrique Ruas a sua casa, na Parede, deixávamos antes Camossa em Linda-a-Velha, onde residia; numa das viagens, no caminho da Marginal, foi ele quem nos alertou para o facto de não se tratar de Cruz Quebrada, mas sim: Cruz-que-Brada…
Com frequência, a “aula” continuava após o jantar, no carro durante a viagem até à Parede, onde ia deixar Henrique Ruas à porta de sua casa e, depois, de regresso a Lisboa, levava Álvaro Dentinho também até à porta do prédio onde habita, prolongando-se o diálogo, sempre fértil, sobre tudo e até altas horas da noite.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Nos Lábios de Vinho com João Camossa

«TRÊS TIPOS DE PORTUGUESES

Os Fuzeteiros são marinheiros, velejadores e caracterizam-se pelos excelentes barcos à vela que possuem, rapidíssimos, os mais rápidos do mundo; guardam os segredos das velas. Encontram-se em toda a costa algarvia e costa alentejana, até Sesimbra. Na Ericeira e em Paço de Arcos há uma variante deles que são os Jagotes.

Os Aveiros são os que fazem a ligação dos homens do mar com os almocreves, são os armadores da pesca ao atum e da pesca ao bacalhau. São oriundos de Ílhavo (Aveiro) e distribuem-se por toda a costa a norte de Lisboa (Peniche, Nazaré, Figueira, Aveiro, etc.), o último núcleo deles é em Portugalete, perto de Bilbao, no Golfo da Biscaia. As suas embarcações não têm vela, são aguçadas nas pontas, deslocam-se a remos e são puxadas por animais em terra.
No Algarve há dois núcleos deles, um em Olhão e outro em Lagos; geralmente consideram-se gente fina e não se misturam com os Fuzeteiros (pescadores, gente do mar), pois eles não são pescadores nem marinheiros, são armadores e capitães.

Os Poveiros não têm embarcações mas são embarcados que auxiliam na pesca e há-os muitos para o norte...»

Palavras retiradas no decorrer de uma conversa de
Francisco Moraes Sarmento e Nuno cavaco com
João Camossa
(café do Bairro Alto na noite de 22 de Julho de 1991)