sexta-feira, 12 de junho de 2009

Carta de Elísio Gala

Em complemento dos dois posts anteriores, considero relevante deixar de seguida publicada com a concordância do autor, a carta que Elísio Gala nos dirigiu, a Francisco Moraes Sarmento e a mim, à qual faço referência no artigo que intitulei «Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa».
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Caro Francisco Morais Sarmento
Caro Nuno Cavaco

Em momentos diferentes nos conhecemos.
No teu caso Francisco, já lá vão 27 anos. Conheci-te como Director da Revista Ensaio, tendo sido por teu intermédio e do meu irmão José Luís que conheci o Dr. Orlando Vitorino e todos os nomes dos mestres que nos educaram, nomeadamente Pinharanda Gomes, António Quadros, Afonso Botelho, Agostinho da Silva, António Telmo, Henrique Barrilaro Ruas. Em tertúlias várias, em cafés e restaurantes que já não existem, vivemos a alegria do debate das ideias, da elaboração de revistas, a Leonardo, os Cadernos de Filosofia (revista surgida no contexto da Universidade Católica e que se constituiu como crítica do que era e continua a ser a Universidade em geral, revista que eu dirigia e que tu compunhas graficamente e para a qual contribuías com tantas sugestões).
Estivemos juntos nas “lições” sobre o Organon que o Pinharanda generosamente nos ministrou, nas antigas instalações do atelier de arquitectura Promontório, onde aliás, foi concebida graficamente a revista Leonardo.
Estivemos juntos no lançamento da Campanha do Dr. Orlando à Presidência da República, no Porto, com a presença do saudoso Sant´Anna Dionísio. Estivemos juntos na organização de colóquios - Linhas Míticas do Pensamento Português, Sabatina de Estudos de António Quadros, homenagens a Álvaro Ribeiro e Dalila Pereira da Costa, entre outras.
No caso do Nuno, o conhecimento é mais recente, mas não menos rico e não menos caracterizado por iniciativas de natureza semelhante às que atrás referi.
As circunstâncias da vida, a família e o trabalho lançaram-nos, Francisco e Nuno, por caminhos diferentes. Os Mestres entretanto foram morrendo, deixando-nos com a sua obra e exemplo e com juízos que, por nos terem sido comunicados de modo individual, não tornamos públicos. Do grupo inicial de mestres com que tivemos a oportunidade de crescer, estão em nossa companhia, Pinharanda Gomes e António Telmo, que devemos mais do que tudo valorizar, ou, quando discordamos, perguntar primeiro a razão da tese ou teses suscitadoras da controvérsia. O caminho da crítica pública, sem primeiro questionar em privado quem nos merece o maior respeito e a maior gratidão, é trabalho que só beneficia os críticos da filosofia portuguesa, os Carrilhos, Eduardos Lourenços e Antónios Cândidos Francos que não sabem, não querem saber, ou evitam que outros saibam o que se contém no significado de filosofia portuguesa.
Com maior ou menor assiduidade no convívio, soubemos ir mantendo contacto, procurando, cada um de nós a seu modo manter a fidelidade à ideia de que a filosofia não é um curso, mas uma carreira, como disse Leonardo Coimbra a Álvaro Ribeiro.
A vida há-de julgar-nos sobre se procurámos servir a Pátria ou servir-nos da Pátria. A obra que cada um está ou ainda vier a realizar – falando, escrevendo, pensando, ou simplesmente vivendo de um modo tão exemplar que suscitará a indagação do porquê e do como de um tal viver – é que, penso, há-de aferir do nosso amor e contributo à filosofia portuguesa.
São estas palavras, neste contexto, dirigidas às duas pessoas com que tenho afinidade nesta Leonardo que acompanho quase diariamente. Muitas das críticas à Universidade que aí são feitas, concordo com elas… como poderia não deixar de concordar, se todas elas se sustentam no pensamento rigorosamente deduzido de mestres como Orlando Vitorino, António Telmo, Pinharanda Gomes, Agostinho da Silva, Afonso Botelho, António Quadros, além dos textos fundamentais de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Fernando Pessoa!?
Mas dirijo-vos estas palavras, porque não reconheço, no estilo, no conteúdo e forma da generalidade dos textos da Direcção desta Leonardo, a natureza do estilo, conteúdo e forma, do vosso pensar e escrever, Francisco e Nuno. Uma tal percepção é agravada pelo facto de, por altura da publicação de um texto do Dr. António Telmo na vossa revista, um dos membros da Direcção ter saudado o filósofo com o convite para a constituição de um triunvirato. Dele, não fazia parte o vosso nome. Pergunto-vos pois, se é que reconhecem em mim, ainda um amigo a quem é digno responder de modo educado, o seguinte: o último texto assinado pela Direcção também tem a vossa assinatura e portanto a vossa concordância? Deverei tomar o vosso silêncio como um sim!?
Sampaio Bruno incitava-nos a fazer guerra às ideias, mas a buscar a Paz entre os homens. Vejo, na generalidade dos escritos da Direcção, um estilo de demasiada guerra, ou melhor, de demasiado ataque pessoal aos homens, que desconheço nos vossos textos e que jamais vislumbrei – nem implicitamente – no pensamento, obra e exemplos dos mestres atrás citados. Invoca-se várias vezes Orlando Vitorino, um homem superior, atlético – como o qualificou Sant´Anna Dionísio na cerimónia de lançamento da campanha presidencial – viril. Amante das artes como era e atlético como sempre se nos manifestou, dava-nos exemplo daquele Homem perfeito e educado de que fala Platão como modelo da Paideia grega. O homem que viriliza o corpo sem se tornar um bruto. O homem que cultiva as artes, sem se tornar um efeminado.
Os mestres com que tivemos oportunidade de lidar ensinaram-nos, penso eu, um caminho difícil: não nos mentirmos a nós próprios, reconhecendo-nos como pessoas com limites; não nos considerarmos donos da verdade, nem os mais importantes ou perfeitos, brilhantes ou geniais, poderosos ou especiais.
Os mestres com que tivemos oportunidade de lidar ensinaram-nos, penso eu, o difícil caminho de, considerando-nos como pessoas comuns, aceitarmos a vida com os seus desafios e paradoxos, fazendo das fraquezas forças e contribuindo com a modéstia de uma ideia, de uma tese, de uma vida exemplar, para a grande obra de aproximação do Homem à Natureza, do Homem ao Homem, do Homem a Deus. Em suma, para a grande obra que também cabe à filosofia portuguesa.

Com um abraço amigo

Elísio Gala

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