quinta-feira, 11 de junho de 2009

LEONARDO, Revista de Filosofia Portuguesa

O texto que segue foi enviado no dia 8/6/2009 ao Francisco Moraes Sarmento para que fosse publicado na Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa com a maior brevidade possível face à gravidade do assunto que trata. Não foi publicado.

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LEONARDO, Revista de Filosofia Portuguesa

Os sinais indicam a transposição de todos os limites admissíveis, roçando mesmo a bestialidade, afigurando-se caso para invocar a presença de um D. Quixote que, em tributo ao irmão Orlando Vitorino, a visão de António Telmo nos revela, “para derrotar os mágicos negros e as suas manipulações”.

A Leonardo tem seguido uma concepção editorial e uma linha redactorial cuja forma se revela repetidamente despropositada, esbanjadora, pouco objectiva, pouco séria, chegando mesmo a recorrer-se a algumas formas de expressão e termos que antevêem certos contornos de boçalidade em contextos nos quais não vislumbro motivo. Acresce a gravidade o facto de textos assinados pela Direcção veicularem esta imagem, mais diabólica que simbólica e pouco estimulante e abonatória ao exercício poético e filosófico. A Revista de Filosofia Portuguesa que se pretendia perdeu o rumo inicial e sobre ela recai uma névoa que tende a turvar as rotas possíveis.

Na tradição poética e filosófica que se iniciou com Sampaio Bruno e formalizou num "organon" principial com Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra na Renascença Portuguesa, a geração dos mais velhos está ainda representada por António Telmo e Pinharanda Gomes, que nos garantem o magistério da palavra e a iniciação numa tradição que tem vindo a aperfeiçoar a expressão poética e filosófica, assinalava o Director da revista no texto em que pretendia definir o lugar de Todos nós, os da Leonardo[1], e traçava a rota da viagem que nos compete.

Vêm estas palavras a propósito da resposta assinada pela Direcção ao comentário do leitor Pedro Sinde, na sequência do artigo do Miguel Bruno Duarte intitulado: “Os malefícios de Salazar ao Porto”. A resposta ao Pedro Sinde em nome da Direcção afigura-se inadmissível, pois não me revejo no essencial do seu conteúdo e muito menos na forma, o que de resto sucedeu em diversos outros escritos que para trás foram publicados.

Surpreende-nos ver um texto assinado pela Leonardo (para justificar a posição de um dos membros da Direcção) invocar a abstracção do “sentido comum” da figura de D. Quixote em detrimento da imagem que o filósofo lhe confere!... Não é a primeira vez que a Leonardo dá sinais desta ordem; é inaceitável que a Leonardo dirija ao público textos que traduzam uma inconsciência dominada por quadros mentais rasteiros, talvez oriundos de um determinismo estruturalista e materialista.

Seria conveniente que o Miguel Duarte esclarecesse o sentido que dá à expressão de guerreiro para que não estimule no leitor a tentação fácil de recorrer ao sentido comum de interpretação quanto ao entendimento da imagem que pretende projectar do Orlando Vitorino.
Se entendermos a guerra como a expressão dramática do conflito último entre os homens depois de entre eles aparentarem esgotados todos os argumentos que capacitem a via simbólica, em cujas consequências relevam a destruição das existências e o domínio dos espíritos diabólicos, no palco em que tal brutalidade ocorre vislumbramos os guerreiros seus excelsos actores…
Sendo o actor, aquele que faz, com uma virtualidade que só a ele pertence, o que há de significativo na acção[2], fica o ofício do actor todo aí: as palavras são da personagem, o outro do actor, e ao emprestar-lhe, com o corpo visível que ela não possui, a voz que ela também não tem, da personagem recebe o actor as palavras que não são suas[3]. Embora reconheça superior nobreza na figura do actor cuja vida por definição toda ela ocorre de forma significativa, e assim o guerreiro, temos que esse não se afigurava o perfil de Orlando Vitorino, até porque nunca perdia a razão. Essa era uma capacidade de abertura ao espírito que o assistia e que lhe garantia a não necessidade da guerra, a qual entendia que só a estupidez e a visão parcial e obtusa das questões poderia gerar, como em algumas ocasiões ele nos referiu. De resto, em palestra que promovemos para estudantes de urbanismo e de arquitectura da Universidade Lusófona, lembro de Orlando dissertar sobre aquelas artes que entendia não ser conhecedor profundo, utilizando por isso o recurso ao conhecimento e à experiência que detinha nas artes do palco; começou então por nos contar que no teatro fez de tudo um pouco, foi empresário, dramaturgo, encenador… só nunca foi actor. Efectivamente tenho que Orlando Vitorino não era um guerreiro, até porque me parece incompatível com a figura do filósofo.

Só quem não tem o sentido do sagrado não percebeu que a forma como Miguel Duarte referiu as intenções de Telmo para com o irmão profanam sim senhor a relação duplamente fraternal que ambos perfilham, de sangue e de pensamento, pelo que parece compreensível a dedução de Pedro Sinde em direcção a uma eventual intenção caluniosa de Miguel Duarte sobre António Telmo. Mesmo que Miguel não pretendesse deixar implícita a ideia que António Telmo tratou inferiormente o irmão Orlando, essa foi a leitura de, pelo menos, um leitor, o Pedro, já que foi o único que se pronunciou. Mas, já agora, o Pedro não se encontra só nessa leitura, pois sei também que o Elísio Gala a fez[4], tal como eu a fiz.

A obsessão da Leonardo sobre Sesimbra já se torna despropositada. Não se afiguram questões filosóficas a ser tratadas, em vez de se insistir ridiculamente em discutir pretensas e obscuras intenções dos organizadores dos colóquios de Sesimbra de quererem silenciar sepucralmente o pensamento de Orlando? Parece porém natural que o evento que pretendeu colocar na ordem clara das mentes atentas a renovação do espírito de 57, por motivação e esforço dos convivas de António Telmo, evidentemente se alimentou, bebeu e inspirou no seu testemunho, em sua relevante autoridade e alto magistério. Sem dúvida, a Leonardo teria seguido outra via, mas a Verdade ambicionada parece-nos a mesma. O magistério e autoridade de António Telmo no evento em causa afiguram-se suficientes para que se lhe deva respeito e confiança. A voz, a força e o lugar de Orlando Vitorino no escol da filosofia portuguesa em geral, e no movimento de 57 em particular, foram garantidos e ficaram então bem marcados no contributo, na pena e na palavra de seu epígono Francisco Moraes Sarmento. Outros terão contribuído para relevar seus mestres, ou as teses de pensadores decisivos no movimento. E os universitários de serviço lá estiveram para, felizes e contentes, da verdade nada dizerem, mas, quem sabe, como sempre parece, quais agentes secretos, ali foram tentando recolher informações e a estrutura dos acontecimentos para depois em seus laboratórios, sob técnicas distantes de qualquer simples mortal, tomados de espírito ingénuo tudo deformarem e até à exaustão decomporem, sabe Deus com que propósito ou finalidade… Portanto, o painel estava completo e o desenho realizado sob a justa batuta de António Telmo.

São indignas as veredas do espírito que insuflam insultos, calúnias ou boçalidades quando as suas direcções pretendem atingir companheiros de viagem. Tanto mais interditas se devem afigurar essas veredas quando esses companheiros são autoridades que sacrificaram as suas vidas em prol da actualização daquele pensamento filosófico cujo espírito, invocando a ordem magistral de Orlando Vitorino, os da Leonardo tanto pretendem catalizar auto-proclamando-se como que seus fiéis depositários, porta-estandarte, justos guardiães e decisivos continuadores da ortodoxia filosófica da pátria portuguesa. Ora o espírito corre independente da vontade dos homens, e recebe-o quem estiver preparado no sítio e no tempo adequados; não foi, não é, nem será exclusivo da Leonardo, por simples vontade dos seus responsáveis, a permanência e a contenção do espírito filosófico dos portugueses, mesmo aquele dado a conhecer por Orlando. Outros, para além dos que fazem actualmente a Leonardo usufruíram e beneficiaram forte e seriamente do convívio tertuliar e magistral do Filósofo. Entre eles, incontornáveis e na primeira linha: João Luís Ferreira, Gonçalo Magalhães Collaço, e Elísio Vaz e Gala. Cada um certamente actualizando e personalizando o espírito que mais importa, fiéis ao magistério que receberam, no uso e na superação dos meios, contra-tempos e circunstância com que se deparam. Porém, estes, pouco ou nada têm colaborado com a Leonardo, mas sabemos que, lá, por onde e quando cada um deambula, caminha e actua, as suas vidas marcam sempre em alerta às coisas do espírito e fiéis ao magistério que Orlando generosamente lhes disponibilizou. Portanto, não revejo n’Os da Leonardo a detenção do exclusivo do pensamento filosófico português, embora considere sem dúvida que o Francisco Moraes Sarmento enquadra o trio de primeira linha acima referido.
Para a continuidade séria da revista, e para que cumpra os propósitos a que se propôs, não podem Os da Leonardo exigir para si o exclusivo do pensamento português, nem do magistério orlandino, nem da filosofia portuguesa. Até porque o pensamento é o órgão da liberdade, e sobre qualquer homem pode ocorrer derramar-se o espírito que mais importa, e no escol da Filosofia Portuguesa fora da Leonardo diversos parecem os indivíduos que se encontram abertos e disponíveis à sua actualização. Lembre-mo-nos que a geração dos mais velhos está ainda representada por António Telmo e Pinharanda Gomes, que garantem o magistério da palavra e a iniciação numa tradição que tem vindo a aperfeiçoar a expressão poética e filosófica.

Nunca deverá a revista desviar-se na sua concepção editorial e linha redactorial do exercício de ordem poética e filosófica, muito menos quando os temas, assuntos, ou notas tratados reportam, invocam ou recorrem aos mestres e autores consagrados do movimento.

Pinharanda Gomes e António Telmo não são propriamente uns universitarões nem uns politicozinhos da nossa praça, muito menos uns socialistazecos desses que ou lhes somos indiferentes ou a lidarmos com eles a única linguagem que entendem será eventualmente aquela que o aristotélico brasileiro Olavo de Carvalho[5] por vezes utiliza, quando a eles se dirige.
(Francamente, à primeira vista poderíamos considerar que o Miguel não está a discernir o alvo, mas nos seus escritos já deu provas de não ser assim tão míope, de onde torna legítimo questionarmos se não persegue outra intenção alheia à filosofia portuguesa.)
Efectivamente, são os dois filósofos autoridades a quem antes de tudo devemos respeito e reverência, e a quem devemos muito do pouco que sabemos…
Assim em meu entender, ou a Leonardo retoma a via da revista de filosofia portuguesa a que se propôs, ou deve encerrar.

Por fim, enquanto membro da Direcção da Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, quero aqui deixar um pedido de desculpa ao António Telmo e ao Pinharanda Gomes, assim como a todos os leitores sérios da revista, pelos textos e palavras despropositadas que aqui foram veiculadas.

Nuno Cavaco
Quarteira, 8/6/2009

[1] Francisco Moraes Sarmento, Leonardo Revista de Filosofia Portuguesa, edição electrónica, 2008.
[2] O Discurso sobre o que o teatro é, texto que encerra a primeira edição de Tongatabu, de Orlando Vitorino (Teoremas, Lisboa, 1977).
[3] As Regras ignoradas da arte de bem representar aqui publicadas para que nelas se louvem os actores que representarem Tongatabu, texto que abre a segunda edição de Tongatabu e Nem Amantes Nem Amigos, de Orlando Vitorino (Teoremas de Teatro, Lisboa, 1965).
[4] A propósito, Elísio Gala escreveu uma carta dirigida ao Francisco Moraes Sarmento e a mim.
[5] http://olavodecarvalho.org/

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