quinta-feira, 25 de outubro de 2007

O Guardador das Rotas e das Rótulas – III

Impressões de viagem à Madeira

Surge antes de mais uma primeira incerteza que é a de saber quando e onde se inicia a viagem. De facto, a viagem terá seu início onde e quando o veículo que nos leva inicia seu movimento, ou no instante em que atingimos o cais do destino que nos propusemos visitar, logo após nele sermos largados? Ou antes, no momento e no lugar em que se dá a ideia da viagem que pretendemos? Ou ainda, numa outra qualquer circunstância que agora não ocorra?

Quando advém a ideia de visitar a Madeira, imediatamente se perspectiva a oportunidade de conhecer um território que se nos afigura decisivo na consolidação do Portugal autêntico, razão eventual do nome que tem – a quantidade de portos, na voz do sábio, assim como pinhal ou olival designam as quantidades das árvores supostas, o guardador e gestor das passagens, dos portos e das portas pelos quais e pelas quais passam as novidades que garantem a comunhão entre todos os entes e todas as coisas do mundo, como já antes tínhamos escrito.

Efectivamente, a Madeira parece afigurar-se como rótula que desde o início tem servido como banco para ensaios relativos a inovações tecnológicas e cientificas que supõem intenções de extensão e aperfeiçoamento no que respeita ao contacto e à comunicação entre os povos. De resto, não esconderá o nome daquele arquipélago, desde a primeira hora, a função estratégica, laboratorial e logística necessária ao desenho então traçado pelo Infante de Sagres, com assomos de projecto de comunicação global em sintonia e em consciência clara com o serviço que a Portugal cabe?

Madeira não é o mesmo que matéria e a matéria não é o que se manipula nos laboratórios? E para os antigos, dos quais brota a tradição, não eram os nomes das pessoas, dos sítios e das coisas a palavra síntese reveladora dos seus atributos herdados e projectados?

Por ora, diríamos que a viagem teve início no breve estudo sobre o arquipélago, a que nos entregámos em Lisboa antes da partida, por consultas bibliográficas, cartográficas, fotográficas, etc. A estadia programada confinar-se-ia ao território principal do arquipélago, a ilha da Madeira.

Ilha? De onde provém este modo de designar uma porção de território cercado por mar? Quem vive aí dentro sente e entende como tal esse território, como uma ilha? Do que nos tem sido dado observar, é que não existem territórios tão propícios às comunicações como sejam essas emergências que se encontram nos meios dos oceanos, quais rótulas por onde giram as rotas entre continentes, plataformas ancoradoiras propícias aos encontros e desencontros das vidas que circulam pelos mares abertos.

Na documentação disponível, logo se nos revelou a impressionante conjuntura fisiográfica do território e nos despertou o interesse por compreender os modos de ocupação e superação humana relativamente às adversidades e dificuldades inerentes àquelas formas naturais.

Procurámos compreender o relevo e as exposições aos agentes climáticos; tentámos perceber as estruturas geológicas e os mantos pedológicos; indagámos a distribuição das vidas vegetal, animal e humana na ilha, e tentámos conhecer as formas genéricas do povoamento e a sua natureza dominada. Pois que face à imagem prévia que retivemos no breve estudo inicial, impressão nos ficou que só dominando a natureza poderia ocorrer possibilidade única de humanização da paisagem, tal qual a testemunhámos naquela rótula do Atlântico.







Fig.1 – A brutalidade da natureza, dominada pela paisagem portuguesa, e posta em causa pelo avanço do turismo.



Exactamente, foi logo à chegada, no percurso entre o aeroporto e o Funchal que confirmámos as vertiginosas vertentes que em declives bastante acentuados, desde os picos mais elevados, a cerca de 1900 metros de altitude, mergulham no oceano, penetrando com o declive genérico da superfície até atingirem profundidades na ordem dos 3000 metros. A altitude máxima do relevo madeirense deve assim rondar os 5000 metros! … Abruptos precipícios com mais de 500 metros caem sobre o mar e sobre vales rasgados por ventos e por ribeiras que escorrem alimentadas desde os cumes mais altos por arroios e cascatas. Caminhamos na Madeira embailados numa sinfonia composta do chilrear diverso dos passarinhos, do tiritar suave das folhagens que acusam a passagem dos ventos, dos roncos de máquinas agrícolas ou de veículos na estrada, do matraquear longínquo, e por vezes próximo, irradiado de martelos pneumáticos e outra maquinaria usados nas imensas (talvez demasiadas!) obras de construção civil; toda esta ressonância tem como fundo, sempre, o escorrer e o bater de águas que nos toca os ouvidos desde múltiplos focos impulsionados por aquelas torrentes imensas que deslizam lá dos cumes altíssimos, luminosos que tocam o céu, como ilhas emergindo por entre um mar de nuvens…

Impressiona a contenção a que o homem tem obrigado a natureza neste jardim do Atlântico; exprime-se com grande fulgor a necessidade permanente da humanização da paisagem. Só pode ter sido assim desde o início! … Um confronto ininterrupto do Homem contra a natureza. Toda aquela paisagem, tal qual a encontramos, resulta de uma labuta intensa e necessária, desenvolvida pelos homens diária e ininterruptamente desde pelo menos há cinco séculos e meio, procurando manter viva toda uma actividade humana que sobre uma força bruta da natureza vem garantindo a função rótula que cabe àquela ilha, inserida no serviço reservado a Portugal no concerto das nações.

É notável a obra agrária indissociável da hidráulica, expressas nos poios e nas levadas. É que, sem dúvida, radica nestas obras o segredo do domínio da natureza bruta que ali emerge; a contenção daquelas montanhas em degraus por vezes como que nos lembram a velhice dos mistérios da humanidade ao surgirem na paisagem como que partes de pirâmides em ruínas.







Fig.2 – Uma levada e um caminho, os homens e as águas seguem os mesmos cursos.


Antes de embarcarmos na viagem, ainda em Lisboa, ouviríamos o governador da região, em grande espectáculo, numa festa local do seu partido, dizendo que o continente fez a Pátria portuguesa na Madeira, mas que agora é a vez dos madeirenses virem em auxilio do continente para tratar os males que por cá impedem o fluir do espírito patriótico nas decisões capitais. Confiando assim no sentido patriótico de A. J. Jardim, apetece sugerir que reúna na Madeira os meios necessários e promova as condições necessárias, para a formação de autênticos Ordenadores da Paisagem de tradição portuguesa. Faça-se, pois, aí, a escola de onde sairão os novos responsáveis pelas paisagens de tradição portuguesa, ou seja, os novos responsáveis pelos países que hão-de constituir o Portugal do futuro. É que, de facto, nos ficou a impressão que ali, naquela rótula do Atlântico, ainda flúi o sopro da Pátria; ainda resiste a sabedoria portuguesa para o ordenamento da paisagem; no entanto, já ameaçada pelas obras que têm ocorrido à passagem dessa roda lenta, dentada, de invenção afrancesada que, por onde passa, deixa rasto de destruição. O turismo…






















Fig.3 – A brutalidade da montanha, contida pela subtileza dos poios.

Sem comentários: