domingo, 28 de outubro de 2007

O Guardador das Rotas e das Rótulas – VI

Urbanismo e Paisagem

É bela a paisagem que está certa


A noção em epígrafe é recorrentemente lembrada e recomendada por A. P. Dentinho como lema à arte de bem entender, compreender e ordenar a paisagem.

Estranho tempo, este que nos é dado viver! Nunca, como na actualidade, os homens dispuseram de tantos meios que permitissem a expressão dos seus pensamentos, e a sua intervenção sobre a existência, com uma segurança que invejaria qualquer homem de outros tempos. No entanto parece desolador o panorama que se depara na ocorrência próxima do mundo. Como se o mundo deixasse de ser mundo – isto é, caos organizado, e passasse a constituir-se numa acumulação de fragmentos justapostos sem critério reconhecível ao entendimento, como que imitando uma qualquer obra de Picasso. É que toda a existência aparece fragmentada, e cada fragmento, ou cada parte, perdida que está daquela que lhe cabia ser vizinha, parece não mais ter capacidade de conhecer e saber sobre a nova vizinhança. A composição que resta é feita de cacos justapostos entre si em procura desesperada de uma forma perdida. A existência que corre apresenta-se em forma nostálgica ou incompreensível de partes partidas e repartidas, recolocadas e coladas de acordo com interesses invisíveis, difusos e desconhecidos que mais parecem confinados a domínios particulares sem que se vislumbre ocorrência universalizante. Efectivamente a vida actual decorre às partes; e embora cada parte se aparente una em si, sucede que perdidos os respectivos e necessários complementos, o sentido universal fica ausente.

Como nada há sem pensamento, foi a partir de Descartes que irradiou e impregnou no mundo a sistematização filosófica que ainda hoje nos condiciona as relações de vizinhança e incessantemente consubstancia a desagregação fragmentária das realidades. Essa irradiação prolongada por todo o século XVII, XVIII e XIX terá levado a que, ou já por estratégia operativa de efectivação desse pensamento, ou já por previsão do frenesim escorregadio, estridente e caótico em que a vida se tornaria, emergisse uma nova disciplina. Destinou-se ela a determinar ou controlar o domínio das regras, das técnicas e dos hábitos de que os homens dispõem para conceber e construir, sobre o território, a vida comunitária. Chamariam a essa disciplina o urbanismo, designação conotada com a imagem urbana da comunidade. Assim se procurou dominar o sentido da urbe, defendendo-o da estratégia e da previsão criadas pela geometria descritiva, com a homogeneização e pontualização que Descartes concebeu para o espaço. Será evidentemente discutível se o urbanismo surge para efectivar ou para contrariar a geometria cartesiana. O que não é discutível é o sentido da urbe enquanto lugar onde tudo se une e tudo se cinde – convergência de pastores, agricultores e pescadores; estância de indústrias e de mercadores; sublimação e irradiação de sabedoria.

“As três mais belas cidades do mundo são Constantinopla, Rio de Janeiro e Lisboa. Eu prefiro Lisboa porque é aquela onde a natureza está mais moralizada”. Acabo de transcrever um trecho da correspondência do Conde de Gobineau, o famoso autor do «Tratado Sobre a Desigualdade das Raças Humanas». Esta transcrição dá-nos a imagem com que uma grande sensibilidade de artista viu como a paisagem emerge do país, mas humanizando-o ou moralizando-o. Constitui o mais adequado testemunho de que a beleza de uma paisagem provém de ela estar certa, como sugere o lema proposto pelo Arquitecto-paisagista Álvaro Ponce Dentinho, entendendo por certa a adequação do país ao homem, à moral ou ao pensamento.

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